segunda-feira, 8 de setembro de 2014

MAS NÃO É SÓ O CADÁVER


Álvaro de Campos
Mas não é só o cadáver
Essa pessoa horrível que não é ninguém,
Essa novidade abísmica do corpo usual,
Esse desconhecido que aparece por ausência na pessoa que conhecemos,
Esse abismo cavado entre vermos e entendermos —
Não é só o cadáver que dói na alma com medo,
Que põe um silêncio no fundo do coração,
As coisas usuais externas de quem morreu
Também perturbam a alma, mas com mais ternura no medo.
Sejam de um inimigo,
Quem pode ver sem saudade a mesa a que ele sentava,
A caneta com que escrevia?
Quem pode ver sem uma angústia própria
A espingarda do caçador desaparecido sem ela para alívio de todos os montes?
O casaco do mendigo morto, onde ele metia as mãos (já ausentes para sempre) na algibeira,
Os brinquedos, horrivelmente arrumados já, da criança morta,
Tudo isso me pesa de repente no entendimento estrangeiro
E uma saudade do tamanho do espaço apavora-me a alma…


Álvaro de Campos nasceu em Tavira, Algarve, Portugal, e depois se mudou para Glasgow, Escócia, onde foi estudar engenharia. Primeiro mecânica, depois naval. "Quase se conclui do que diz Campos, de que, o poeta vulgar sente espontâneamente com a largueza que naturalmente projetaria em versos como os que ele escreve; e depois, refletindo, sujeita essa emoção a cortes e retoques e outras mutilações ou alterações, em obediência a uma regra exterior. Nenhum homem foi alguma vez poeta assim" afirmou Ricardo Reis em um de seus apontamentos. Álvaro de Campos é um dos mais conhecidos heterônimos de Fernando Pessoa.

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