Memória
Um genial ensaísta, mas franco demais na ficção
Associated Press
Gore Vidal, emfoto de 1977, mostra seu romance “Myron”,
lançado três anos antes
RESUMO
Ele amava os Kennedy, detestava Truman Capote e dizia já ter
dormido com mil homens e mulheres antes dos 25. De A a Z, um percurso pelo
pensamento do intelectual que agitou os fatos e a ficção do século 20 e que,
morto no dia 1º, deixou uma irônica imagem não só dos EUA, mas também da alta e
da baixa cultura.
STUART
JEFFRIES e STEPHEN MOSS – FOLHA SP
TRADUÇÃO CLARA ALLAIN
A DE AMÉRICA Gore Vidal descreveu sua pátria como os Estados
Unidos da Amnésia. Denunciou o que via como traição aos princípios fundadores
da nação. “Os EUA foram fundados pelas pessoas mais inteligentes do país, e
desde então nunca mais as vimos.” Tinha pouco apreço pelo cargo de presidente,
pelo menos quando não era ocupado por um Kennedy. “Qualquer americano que se
disponha a concorrer à Presidência deveria automaticamente ser desqualificado
como candidato.”
B DE BUSH Não é surpreendente que detestasse George W. Bush.
Vidal disse que os ataques do 11 de Setembro ocorreram porque o governo foi
“incompetente”, e o próprio Bush, “inativo e inoportuno”.
A revista “Vanity Fair” se recusou a publicar um ensaio dele
sobre os ataques. Em outro, no jornal britânico “The Independent”, comparou o
11/9 a Pearl Harbour, argumentando que os presidentes Roosevelt e Bush sabiam
dos ataques de antemão e tiraram proveito deles.
C DE CAPOTE Nem todos os alvos de Vidal eram políticos. Ele
teve uma longa escaramuça com o escritor Truman Capote. É possível que Capote
tenha começado, ao dizer que Vidal tinha sido expulso da Casa Branca por
brigar, bêbado, com a mãe de Jackie Kennedy.
Vidal processou Capote por calúnia e eles trocaram insultos
no tribunal. Vidal sugeriu que Capote tinha “elevado a mentira à condição de
arte -uma arte menor”. Capote retrucou: “Sempre fico triste quando penso em
Gore. Triste por ele respirar todo dia”. Os dois fecharam acordo extrajudicial,
mas a desavença continuou. Depois de Capote morrer, em 1984, Vidal disse que
sua carreira tinha sido “uma boa iniciativa profissional”.
D DE DEMOCRACIA Vidal era cético em relação à democracia em
geral (”Parece que um país democrático é um lugar onde são realizadas muitas
eleições, a um custo alto, sem discutir questões substantivas e com candidatos
intercambiáveis”) e a sua encarnação americana em especial (”De quatro em
quatro anos, a metade ingênua [da população] que vota é incentivada a acreditar
que, se pudermos eleger alguém simpático, tudo ficará bem. Mas não ficará.”).
E DE ENSAIO Vidal foi melhor ensaísta do que romancista.
Martin Amis, que tem pouca paciência com o romancista, reconhece a glória de
seus ensaios: “[Neles, Vidal] é erudito, divertido e perspicaz. Até os pontos
cegos são esclarecedores”. O dramaturgo David Hare disse que Vidal “não tinha
nem sequer um osso ficcional”, mas era um “ensaísta genial”.
Vidal era franco demais, excessivamente apegado às suas
opiniões para ser um grande ficcionista, que precisa representar diversos
pontos de vista. A coletânea de 1993, “United States: Essays 1952-1992″ é um
compêndio majestoso que mapeia não só sua vida bombástica, mas a cultura e
política do país que ele amava e odiava.
F DE FELLINI Vidal adorava fazer pontas no cinema e na TV.
Certa vez, apareceu como simulacro de si mesmo em “Os Simpsons”, ao lado de Tom
Wolfe, Michael Chabon, John Updike e outros; também representou a si mesmo em
“Family Guy” e viveu um senador no filme “Bob Roberts”, de Tim Robbins. Atuou
na ficção científica “Gattaca”, de 1997. Sua aparição final no cinema foi como
apresentador de um “talk show” em “Shrink”, de 2009. A ponta mais importante
talvez tenha sido em 1972, em “Roma”, do amigo Federico Fellini.
G DE GORE “Sou como aparento ser”, ele disse certa vez. “Por
baixo de minha fachada fria, se você quebrar o gelo, vai encontrar água fria.”
O romancista e amigo Italo Calvino insistia em que Vidal não tinha
inconsciente. Vidal satirizou a monstruosidade de sua própria vaidade. “No
íntimo, sou um propagandista, um tremendo de um turrão, certo de que não existe
problema que não possa ser resolvido se as pessoas fizerem o que aconselho”,
disse ele ao jornal “The Guardian” em 2005.
H DE HOMOSSEXUALISMO “Não há homossexual ou heterossexual”,
disse. “Há atos homo ou hetero. A maioria das pessoas é uma mistura de
impulsos, mesmo que não seja uma mistura de práticas.” Em suas memórias,
“Palimpsesto”, afirmou que aos 25 já tinha tido mais de mil encontros sexuais
com homens e mulheres, tendendo mais ao que chamava de “sexo com o mesmo sexo”.
I DE ITÁLIA Vidal viveu por anos retirado no alto de uma
montanha em Ravello, na costa amalfitana, até que sua saúde o impediu de
caminhar pelas colinas. Em 2003, mudou-se para Hollywood Hills, em Los Angeles.
J DE JACK KEROUAC Vidal dizia ter tido um caso com o autor
beat. Em “Palimpsesto”, recorda ter descoberto, “para meu espanto”, que Kerouac
era circuncidado. Foi Capote, não Vidal, quem cunhou a frase mais ferina sobre
a obra de Kerouac: “Isso não é escrever, é datilografar”.
K DE KENNEDY Vidal não se cansava de falar dos amigos
famosos. Seus dois livros de memórias -”Palimpsesto” e “Point to Point
Navigation”, de 2006- descrevem a amizade com a primeira-dama Eleanor Roosevelt,
a princesa Margaret e o maestro Leonard Bernstein. Era amigo de John Kennedy e
parente de Jackie. “É sempre delicado”, escreveu, “quando um amigo ou conhecido
vira presidente.”
L DE LOVE “O amor não é o meu negócio”, insistia. Mas viveu
por 53 anos com o publicitário Howard Austen. A chave da relação, disse várias
vezes, foi nunca dormirem juntos. Austen foi sepultado no cemitério de
Rockcreek, em Washington, em 2003. Vidal disse que queria suas cinzas perto do
companheiro. “Dividimos um lote no cemitério, e estarei lá”, disse Vidal.
“Ansioso por revê-lo.”
M DE MAILER Vidal e o escritor Norman Mailer tiveram uma
rixa literária. Mailer deu-lhe um soco numa festa, levando Vidal a retorquir:
“Mais uma vez faltam palavras a Norman”. Mailer também teria dado uma cabeçada
nele antes de um programa de TV, depois de Vidal o ter comparado ao infame
assassino Charles Manson.
N DE NARRATIVA Vidal escreveu 25 romances. O terceiro, “A
Cidade e o Pilar”, de 1948, história de um jovem belo e atlético que sai do
armário, foi colocado numa lista negra, Vidal alegaria mais tarde. “Vendi 1
milhão de exemplares e isso trouxe angústia ao ‘New York Times’.” O ostracismo
do livro tornou tão difícil ter suas obras resenhadas que assumiu o pseudônimo
Edgar Box numa série de romances policiais.
Deixou os romances de lado por um tempo. Em 1956, a MGM o
contratou. Ele ajudou a reescrever o roteiro de “Ben Hur”, embora não figure
nos créditos. Também escreveu a adaptação da peça “De Repente, no Último
Verão”, do amigo Tennessee Williams. Nos anos 60, voltou a escrever ficção, com
best-sellers: “Julian” (1964), sobre o imperador romano que quis restaurar o
paganismo; “Washington, DC” (1967), a primeira de suas crônicas ficcionais da
história americana, e “Myra Breckinridge” (1968).
O DE OKLAHOMA Vidal criou um elo incomum com o autor do
ataque em Oklahoma City, Timothy McVeigh. Depois do artigo de 1998 na “Vanity
Fair” em que afirma que a Carta dos Direitos dos EUA fora rasgada, os dois
trocaram cartas e a amizade inspirou a peça “Terre Haute”, de Edmund White.
“Ele é inteligente. Não é louco”, disse Vidal sobre McVeigh. Em “Perpetual War
for Perpetual Peace”, Vidal diz que tanto os atentados de Oklahoma como os do
11 de Setembro foram provocados por “agressões insensatas do nosso governo a
outras sociedades”.
P DE POLÍTICA Vidal candidatou-se a cargos eletivos duas
vezes: ao Congresso Americano, em 1960, pelo Estado de Nova York, e ao Senado,
na Califórnia, em 1982. Perdeu ambas, mas em 1960 obteve mais votos que
qualquer democrata no distrito em 50 anos.
Q DE QUEER [VEADO] Nos anos 1960, o colunista conservador
William F. Buckley chamou Vidal de “veado” na TV. Buckley comparava os
manifestantes contra a Guerra do Vietnã a nazistas. Vidal retrucou: “O único
pró ou criptonazista que me vem à mente é você”. “Ouça aqui, seu veado”, disse
Buckley. “Pare de me chamar de criptonazista ou lhe dou um soco. Estive na
infantaria na última guerra.” “Não esteve”, Vidal retorquiu. “Estive, sim.”
“Não esteve.”
R DE RELIGIÃO “O grande e indecente mal que está no cerne de
nossa cultura é o monoteísmo. Três religiões anti-humanas se desenvolveram a
partir de um texto bárbaro da idade do bronze conhecido como o Velho
Testamento: o judaísmo, o cristianismo e o islã. São religiões de um deus celeste.
São patriarcais, e é essa a razão do ódio às mulheres ao longo de 2.000 anos
nos países que sofrem influência do deus celeste e de seus representantes
terrenos do sexo masculino. [...] Em última análise, o totalitarismo é o único
tipo de política que pode atender os objetivos do deus celeste.”
S DE SUCESSO “Cada vez que um amigo faz sucesso, morro um
pouquinho.” Em outra ocasião, Vidal disse: “Não basta ter sucesso. É preciso
que outros fracassem.”
T DE TV Vidal dizia que a TV não é para ser vista, mas para
se aparecer nela. “Nunca perco uma oportunidade de fazer sexo ou de aparecer na
TV.”
U DE UPBRINGING [EDUCAÇÃO] Vidal recebeu o nome Eugene
Luther Gore Vidal por causa do pai, o tenente Eugene Luther Vidal, mas aos 14
livrou-se dos primeiros nomes. Antes de fazer carreira no Exército, seu pai foi
medalha de prata na Olimpíada de 1920. “Nós nos conhecemos durante 43 anos, não
concordávamos em nada, mas nunca brigamos”, disse o filho. “Só homens são
capazes disso. As mulheres não.” Quando sua mãe, Nina Gore, casou-se de novo,
Vidal dividiu o padrasto com Jacqueline Kennedy Onassis. Ele detestava a mãe
(”Bêbados não são grande coisa como companhia”).
V DE VIDAL Gore Vidal não tinha parentesco com o cabeleireiro
Vidal Sassoon. Mas o ex-vice-presidente dos EUA Al Gore é seu primo distante.
W DE “WATERSHIP DOWN” “Gore Vidal está sendo entrevistado no
‘Start the Week’ ao lado de Richard Adams (autor de ‘Watership Down’).
Perguntam a Adams o que ele achou do novo romance de Vidal sobre Lincoln.
‘Achei chamativo, mas sem valor real.’ ‘É mesmo?’ diz Gore. ‘Muito bem, um
Ano-Novo feliz, chamativo e sem valor real para você.’ É assim que se faz.” (De
“Writing Home”, de Alan Bennett.)
X DE X-RATED Vidal recebeu críticas negativas por dois
filmes proibidos para menores aos quais esteve ligado. “Homem e Mulher até
Certo Ponto”, de Michael Sarne, baseado em seu romance “Myra”, foi classificado
como um dos piores filmes de todos os tempos. Mais tarde, Vidal moveu ação
judicial, sem sucesso, para ter seu nome retirado dos créditos de “Calígula”
(1979) como roteirista, depois de o produtor ter acrescentado cenas
pornográficas.
Y DE YELLOW
“In a Yellow Wood” (1947), seu segundo romance, foi inspirado no primeiro verso
do poema “The Road Not Taken”, de Robert Frost (”Two roads diverged in a yellow
wood…”). É sobre um corretor de Wall Street que vive assombrado por
recordações de sua amante italiana durante a guerra. Mais tarde, Vidal diria
que o livro era tão ruim que não suportava relê-lo.
Z DE ZOROASTRO O protagonista do romance “Criação” (1981) é
Cyrus Spitama, diplomata persa aquemênida do século 5 a.C. e neto de Zoroastro.
Ele viaja pelo mundo comparando crenças políticas e religiosas. É um livro
grandioso, ambicioso e pouco lido. Faz lembrar o episódio de “Os Simpsons” em
que Lisa segura um livro intitulado “Tome”, de Gore Vidal. “Esses são meus
únicos amigos”, ela se queixa. “Nerds adultos, como Gore Vidal. E ele já beijou
mais garotos do que eu jamais vou beijar.”
Publicado no jornal “The Guardian”.