quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Vidal de A a Z


Memória

Um genial ensaísta, mas franco demais na ficção

Associated Press

Gore Vidal, emfoto de 1977, mostra seu romance “Myron”, lançado três anos antes

RESUMO

Ele amava os Kennedy, detestava Truman Capote e dizia já ter dormido com mil homens e mulheres antes dos 25. De A a Z, um percurso pelo pensamento do intelectual que agitou os fatos e a ficção do século 20 e que, morto no dia 1º, deixou uma irônica imagem não só dos EUA, mas também da alta e da baixa cultura.

STUART JEFFRIES e STEPHEN MOSS – FOLHA SP

TRADUÇÃO CLARA ALLAIN

A DE AMÉRICA Gore Vidal descreveu sua pátria como os Estados Unidos da Amnésia. Denunciou o que via como traição aos princípios fundadores da nação. “Os EUA foram fundados pelas pessoas mais inteligentes do país, e desde então nunca mais as vimos.” Tinha pouco apreço pelo cargo de presidente, pelo menos quando não era ocupado por um Kennedy. “Qualquer americano que se disponha a concorrer à Presidência deveria automaticamente ser desqualificado como candidato.”

B DE BUSH Não é surpreendente que detestasse George W. Bush. Vidal disse que os ataques do 11 de Setembro ocorreram porque o governo foi “incompetente”, e o próprio Bush, “inativo e inoportuno”.

A revista “Vanity Fair” se recusou a publicar um ensaio dele sobre os ataques. Em outro, no jornal britânico “The Independent”, comparou o 11/9 a Pearl Harbour, argumentando que os presidentes Roosevelt e Bush sabiam dos ataques de antemão e tiraram proveito deles.

C DE CAPOTE Nem todos os alvos de Vidal eram políticos. Ele teve uma longa escaramuça com o escritor Truman Capote. É possível que Capote tenha começado, ao dizer que Vidal tinha sido expulso da Casa Branca por brigar, bêbado, com a mãe de Jackie Kennedy.

Vidal processou Capote por calúnia e eles trocaram insultos no tribunal. Vidal sugeriu que Capote tinha “elevado a mentira à condição de arte -uma arte menor”. Capote retrucou: “Sempre fico triste quando penso em Gore. Triste por ele respirar todo dia”. Os dois fecharam acordo extrajudicial, mas a desavença continuou. Depois de Capote morrer, em 1984, Vidal disse que sua carreira tinha sido “uma boa iniciativa profissional”.

D DE DEMOCRACIA Vidal era cético em relação à democracia em geral (”Parece que um país democrático é um lugar onde são realizadas muitas eleições, a um custo alto, sem discutir questões substantivas e com candidatos intercambiáveis”) e a sua encarnação americana em especial (”De quatro em quatro anos, a metade ingênua [da população] que vota é incentivada a acreditar que, se pudermos eleger alguém simpático, tudo ficará bem. Mas não ficará.”).

E DE ENSAIO Vidal foi melhor ensaísta do que romancista. Martin Amis, que tem pouca paciência com o romancista, reconhece a glória de seus ensaios: “[Neles, Vidal] é erudito, divertido e perspicaz. Até os pontos cegos são esclarecedores”. O dramaturgo David Hare disse que Vidal “não tinha nem sequer um osso ficcional”, mas era um “ensaísta genial”.

Vidal era franco demais, excessivamente apegado às suas opiniões para ser um grande ficcionista, que precisa representar diversos pontos de vista. A coletânea de 1993, “United States: Essays 1952-1992 é um compêndio majestoso que mapeia não só sua vida bombástica, mas a cultura e política do país que ele amava e odiava.

F DE FELLINI Vidal adorava fazer pontas no cinema e na TV. Certa vez, apareceu como simulacro de si mesmo em “Os Simpsons”, ao lado de Tom Wolfe, Michael Chabon, John Updike e outros; também representou a si mesmo em “Family Guy” e viveu um senador no filme “Bob Roberts”, de Tim Robbins. Atuou na ficção científica “Gattaca”, de 1997. Sua aparição final no cinema foi como apresentador de um “talk show” em “Shrink”, de 2009. A ponta mais importante talvez tenha sido em 1972, em “Roma”, do amigo Federico Fellini.

G DE GORE “Sou como aparento ser”, ele disse certa vez. “Por baixo de minha fachada fria, se você quebrar o gelo, vai encontrar água fria.” O romancista e amigo Italo Calvino insistia em que Vidal não tinha inconsciente. Vidal satirizou a monstruosidade de sua própria vaidade. “No íntimo, sou um propagandista, um tremendo de um turrão, certo de que não existe problema que não possa ser resolvido se as pessoas fizerem o que aconselho”, disse ele ao jornal “The Guardian” em 2005.

H DE HOMOSSEXUALISMO “Não há homossexual ou heterossexual”, disse. “Há atos homo ou hetero. A maioria das pessoas é uma mistura de impulsos, mesmo que não seja uma mistura de práticas.” Em suas memórias, “Palimpsesto”, afirmou que aos 25 já tinha tido mais de mil encontros sexuais com homens e mulheres, tendendo mais ao que chamava de “sexo com o mesmo sexo”.

I DE ITÁLIA Vidal viveu por anos retirado no alto de uma montanha em Ravello, na costa amalfitana, até que sua saúde o impediu de caminhar pelas colinas. Em 2003, mudou-se para Hollywood Hills, em Los Angeles.

J DE JACK KEROUAC Vidal dizia ter tido um caso com o autor beat. Em “Palimpsesto”, recorda ter descoberto, “para meu espanto”, que Kerouac era circuncidado. Foi Capote, não Vidal, quem cunhou a frase mais ferina sobre a obra de Kerouac: “Isso não é escrever, é datilografar”.

K DE KENNEDY Vidal não se cansava de falar dos amigos famosos. Seus dois livros de memórias -”Palimpsesto” e “Point to Point Navigation”, de 2006- descrevem a amizade com a primeira-dama Eleanor Roosevelt, a princesa Margaret e o maestro Leonard Bernstein. Era amigo de John Kennedy e parente de Jackie. “É sempre delicado”, escreveu, “quando um amigo ou conhecido vira presidente.”

L DE LOVE “O amor não é o meu negócio”, insistia. Mas viveu por 53 anos com o publicitário Howard Austen. A chave da relação, disse várias vezes, foi nunca dormirem juntos. Austen foi sepultado no cemitério de Rockcreek, em Washington, em 2003. Vidal disse que queria suas cinzas perto do companheiro. “Dividimos um lote no cemitério, e estarei lá”, disse Vidal. “Ansioso por revê-lo.”

M DE MAILER Vidal e o escritor Norman Mailer tiveram uma rixa literária. Mailer deu-lhe um soco numa festa, levando Vidal a retorquir: “Mais uma vez faltam palavras a Norman”. Mailer também teria dado uma cabeçada nele antes de um programa de TV, depois de Vidal o ter comparado ao infame assassino Charles Manson.

N DE NARRATIVA Vidal escreveu 25 romances. O terceiro, “A Cidade e o Pilar”, de 1948, história de um jovem belo e atlético que sai do armário, foi colocado numa lista negra, Vidal alegaria mais tarde. “Vendi 1 milhão de exemplares e isso trouxe angústia ao ‘New York Times’.” O ostracismo do livro tornou tão difícil ter suas obras resenhadas que assumiu o pseudônimo Edgar Box numa série de romances policiais.

Deixou os romances de lado por um tempo. Em 1956, a MGM o contratou. Ele ajudou a reescrever o roteiro de “Ben Hur”, embora não figure nos créditos. Também escreveu a adaptação da peça “De Repente, no Último Verão”, do amigo Tennessee Williams. Nos anos 60, voltou a escrever ficção, com best-sellers: “Julian” (1964), sobre o imperador romano que quis restaurar o paganismo; “Washington, DC” (1967), a primeira de suas crônicas ficcionais da história americana, e “Myra Breckinridge” (1968).

O DE OKLAHOMA Vidal criou um elo incomum com o autor do ataque em Oklahoma City, Timothy McVeigh. Depois do artigo de 1998 na “Vanity Fair” em que afirma que a Carta dos Direitos dos EUA fora rasgada, os dois trocaram cartas e a amizade inspirou a peça “Terre Haute”, de Edmund White. “Ele é inteligente. Não é louco”, disse Vidal sobre McVeigh. Em “Perpetual War for Perpetual Peace”, Vidal diz que tanto os atentados de Oklahoma como os do 11 de Setembro foram provocados por “agressões insensatas do nosso governo a outras sociedades”.

P DE POLÍTICA Vidal candidatou-se a cargos eletivos duas vezes: ao Congresso Americano, em 1960, pelo Estado de Nova York, e ao Senado, na Califórnia, em 1982. Perdeu ambas, mas em 1960 obteve mais votos que qualquer democrata no distrito em 50 anos.

Q DE QUEER [VEADO] Nos anos 1960, o colunista conservador William F. Buckley chamou Vidal de “veado” na TV. Buckley comparava os manifestantes contra a Guerra do Vietnã a nazistas. Vidal retrucou: “O único pró ou criptonazista que me vem à mente é você”. “Ouça aqui, seu veado”, disse Buckley. “Pare de me chamar de criptonazista ou lhe dou um soco. Estive na infantaria na última guerra.” “Não esteve”, Vidal retorquiu. “Estive, sim.” “Não esteve.”

R DE RELIGIÃO “O grande e indecente mal que está no cerne de nossa cultura é o monoteísmo. Três religiões anti-humanas se desenvolveram a partir de um texto bárbaro da idade do bronze conhecido como o Velho Testamento: o judaísmo, o cristianismo e o islã. São religiões de um deus celeste. São patriarcais, e é essa a razão do ódio às mulheres ao longo de 2.000 anos nos países que sofrem influência do deus celeste e de seus representantes terrenos do sexo masculino. [...] Em última análise, o totalitarismo é o único tipo de política que pode atender os objetivos do deus celeste.”

S DE SUCESSO “Cada vez que um amigo faz sucesso, morro um pouquinho.” Em outra ocasião, Vidal disse: “Não basta ter sucesso. É preciso que outros fracassem.”

T DE TV Vidal dizia que a TV não é para ser vista, mas para se aparecer nela. “Nunca perco uma oportunidade de fazer sexo ou de aparecer na TV.”

U DE UPBRINGING [EDUCAÇÃO] Vidal recebeu o nome Eugene Luther Gore Vidal por causa do pai, o tenente Eugene Luther Vidal, mas aos 14 livrou-se dos primeiros nomes. Antes de fazer carreira no Exército, seu pai foi medalha de prata na Olimpíada de 1920. “Nós nos conhecemos durante 43 anos, não concordávamos em nada, mas nunca brigamos”, disse o filho. “Só homens são capazes disso. As mulheres não.” Quando sua mãe, Nina Gore, casou-se de novo, Vidal dividiu o padrasto com Jacqueline Kennedy Onassis. Ele detestava a mãe (”Bêbados não são grande coisa como companhia”).

V DE VIDAL Gore Vidal não tinha parentesco com o cabeleireiro Vidal Sassoon. Mas o ex-vice-presidente dos EUA Al Gore é seu primo distante.

W DE “WATERSHIP DOWN” “Gore Vidal está sendo entrevistado no ‘Start the Week’ ao lado de Richard Adams (autor de ‘Watership Down’). Perguntam a Adams o que ele achou do novo romance de Vidal sobre Lincoln. ‘Achei chamativo, mas sem valor real.’ ‘É mesmo?’ diz Gore. ‘Muito bem, um Ano-Novo feliz, chamativo e sem valor real para você.’ É assim que se faz.” (De “Writing Home”, de Alan Bennett.)

X DE X-RATED Vidal recebeu críticas negativas por dois filmes proibidos para menores aos quais esteve ligado. “Homem e Mulher até Certo Ponto”, de Michael Sarne, baseado em seu romance “Myra”, foi classificado como um dos piores filmes de todos os tempos. Mais tarde, Vidal moveu ação judicial, sem sucesso, para ter seu nome retirado dos créditos de “Calígula” (1979) como roteirista, depois de o produtor ter acrescentado cenas pornográficas.

Y DE YELLOW “In a Yellow Wood” (1947), seu segundo romance, foi inspirado no primeiro verso do poema “The Road Not Taken”, de Robert Frost (”Two roads diverged in a yellow wood…”). É sobre um corretor de Wall Street que vive assombrado por recordações de sua amante italiana durante a guerra. Mais tarde, Vidal diria que o livro era tão ruim que não suportava relê-lo.

Z DE ZOROASTRO O protagonista do romance “Criação” (1981) é Cyrus Spitama, diplomata persa aquemênida do século 5 a.C. e neto de Zoroastro. Ele viaja pelo mundo comparando crenças políticas e religiosas. É um livro grandioso, ambicioso e pouco lido. Faz lembrar o episódio de “Os Simpsons” em que Lisa segura um livro intitulado “Tome”, de Gore Vidal. “Esses são meus únicos amigos”, ela se queixa. “Nerds adultos, como Gore Vidal. E ele já beijou mais garotos do que eu jamais vou beijar.”

Publicado no jornal “The Guardian”.

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