«Deixa-me respirar por muito, muito tempo, o odor dos teus
cabelos, mergulhar neles todo o meu rosto, como um homem sequioso na água duma
nascente, e agitá-los com a mão como um lenço perfumado, para sacudir as
recordações no ar.
Se tu pudesses saber tudo o que eu vejo! tudo o que eu
sinto! tudo o que eu ouço nos teus cabelos! Minha alma viaja sobre o perfume
como a alma dos outros homens viaja sobre a música.
Os teus cabelos contêm um sonho inteiro, cheio de velas e de
mastros; contêm grandes mares cujas monções me levam para climas adoráveis,
onde o espaço é mais azul e mais profundo, onde a atmosfera tem o perfume dos
frutos, das folhas e da pele humana.
No oceano da tua cabeleira, entrevejo um porto a formigar de
canções dolentes, de homens vigorosos de todas as nações e navios de todas as
formas recortando as arquitecturas finas e complicadas sob um céu imenso onde
se pavoneia um calor eterno.
Nas carícias da tua cabeleira, encontro os langores das
longas horas passadas sobre um divã no camarote dum belo navio, embaladas pelo
arfar imperceptível do porto, por entre os vasos de flores e as bilhas que
refrescam a água.
No lume ardente da tua cabeleira, respiro o odor do tabaco
misturado com ópio e açúcar; na noite da tua cabeleira, vejo resplandecer o infinito
do azul tropical; nas praias acetinadas da tua cabeleira, embebedo-me com os
odores combinados de alcatrão, de musgo e de óleo de coco.
Deixa-me morder longamente as tuas tranças pesadas e negras.
Quando mordisco os teus cabelos elásticos e rebeldes,
parece-me que devoro recordações.»
Charles Baudelaire. O Spleen de Paris. Pequenos poemas em
prosa. Tradução de António Pinheiro Guimarães. Relógio D’Água, Lisboa,
1991.,p.49/50
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