05 de agosto de 2012
LEE SIEGEL – O Estado de S.Paulo
NOVA JERSEY – Cinquenta Tons de Cinza é um livro a respeito
do relacionamento sadomasoquista entre uma universitária inocente e um jovem e
lindo bilionário, que a convida para partilhar os prazeres do sexo na sua “sala
vermelha da dor”. A obra causou sensação nos Estados Unidos, vendendo centenas
de milhares de exemplares no formato eletrônico e no impresso. Praticamente
todos aqueles que ganham a vida escrevendo já apresentaram sua opinião do livro
– na verdade, todas as escritoras o fizeram. Os escritores parecem querer
distância dele.
Tentei ler o livro e tive de abandoná-lo quando cheguei à
parte em que o protagonista, Christian Grey, faz sexo violento com a jovem e
virginal Anastasia. Como em toda a pornografia, o trecho mais parecia uma lista
de instruções para a correta organização de uma mesa de cartas. Quanto mais
explícitos são os textos sobre o sexo, mais constrangedora é a sua leitura. O
trecho mais erótico de toda a literatura é do grande romance de Gustave
Flaubert, Madame Bovary, escrito no século 19, quando Emma Bovary viaja de
carruagem com seu amante, Rodolphe. Flaubert jamais descreve o encontro sexual,
o que o torna muito mais tórrido.
A esta altura, dúzias de comentaristas destacaram as
semelhanças entre Cinquenta Tons de Cinza – escrito por uma ex-executiva da
televisão britânica chamada E.L. James – e romances góticos como Jane Eyre, bem
como a popular série de romances vampirescos Crepúsculo. Mas ninguém explorou a
dinâmica entre o bilionário e sua presa. Ninguém indagou se Anastasia
permitiria que o caixa de uma livraria ou um mecânico de carros a espancasse,
machucasse e torturasse sexualmente. Em vez de fugir de um homem claramente
perturbado e insano, ela fica ao lado dele, tentando transformá-lo num amante
terno e cheio de consideração.
Assim, nestes EUA que têm mais bilionários do que qualquer
outro país do mundo, nestes EUA onde a distância entre ricos e pobres aumenta a
um ritmo alarmante, nestes EUA onde uma oligarquia é cada vez mais a dona do
país – neste lugar que se torna cada vez mais estranho para aqueles que, como
nós, o amam, a obra de ficção mais popular no mercado é, literalmente, sobre
uma mulher que submete sua dignidade e a própria alma ao fato bruto da riqueza
e do poder.
Os rituais do sadomasoquismo me parecem se encaixar
perfeitamente numa cultura que está se tornando dominada quase que
exclusivamente pelos valores de mercado. Não estou julgando ninguém – aquilo
que é de consentimento mútuo entre duas pessoas no reino do prazer não deve ser
da conta de nenhuma outra pessoa, e Deus sabe que todos precisamos do prazer
para sobreviver. Quero apenas destacar, com aquilo que espero ser uma neutralidade
antropológica, que o sexo sadomasoquista é o sexo mais quantificável que se
pode ter. Assim como ocorre numa permuta altamente estruturada, não há
surpresas. Todos os componentes são apresentados previamente. A fórmula
subjacente é clara: Dor = Prazer. Prazer é divisível pela dor. Dor multiplicada
por duas chicotadas, uma torção e um pisão = prazer.
Se o sexo é, entre outras coisas, uma incalculável
sublimação do estresse, do conflito e da tensão na forma do prazer, então – na
minha concepção – o sexo sadomasoquista é uma dessublimação do prazer sexual
diretamente de volta ao reino do estresse, do conflito e da tensão. Se o sexo
é, ao lado da arte e do brincar, o grande domínio da liberdade humana no qual
podemos nos refugiar do estresse, do conflito e da tensão do mercado, então o
sexo sadomasoquista é um retorno ao mercado. Somente os muito ricos, que talvez
anseiem pelo conflito diário como apenas outra diversão, podem vivenciar o
ritual sadomasoquista como uma fuga. Para todos os demais, este sexo traz
apenas aquilo que temos no nosso dia a dia.
E por baixo das permutas sadomasoquistas entre Christian
Grey e Anastasia está, é claro, a permuta mais antiga de todas. Anastasia
oferece sexo a Grey, e ele concede a ela os benefícios do seu poder. Nos velhos
tempos, isso significaria joias, roupas e, quem sabe, um apartamento, e as
pessoas teriam lido isso e enrolado a língua em sinal de reprovação,
compartilhando entre si também uma piscadela, já que, num certo nível, é assim
que o mundo funciona, e isso consiste num elemento essencial da tríade amor,
casamento e filhos. Mas, além de comprar para a jovem um bracelete de platina e
diamantes para cobrir as marcas no pulso dela, Grey não dá a Anastasia nada que
tenha valor material. Em vez disso, ele a espanca e machuca e simula com ela
violações anais. E os leitores estão comprando o livro aos montes.
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