sábado, 28 de maio de 2011

O incômodo papel de apontar a ruína

Enredo da obra está repleto de pessoas cujo desejo de ser livre acaba por torná-las miseráveis – e aos que vivem do seu lado




Jonathan Franzen é, por seu próprio relato, uma alma dividida. “Ocorre”, ele escreveu certa vez, “que eu me inscrevo em dois modelos totalmente diferentes de como a ficção se relaciona com o público”. Um era o modelo Status: arte elevada, gênio, Flaubert; o outro era o modelo Contrato: acessibilidade, prazer, a comunidade de leitores. As duas coisas pelas quais Franzen se notabiliza (além, é claro, de The Corrections – no Brasil, As Correções -, seu best-seller ganhador do National Book Award de 2001) criaram controvérsias públicas que surgiram dessa mesma divisão interior. A primeira foi seu ensaio para Harper”s de 1996 que renunciava ao romance de crítica cultural em favor de “escrever ficção pela diversão e o entretenimento da coisa”, embora conseguisse fazê-lo de forma que o deixava parecendo exatamente o tipo de ideólogo com o qual não queria ser confundido. A segunda pode ser chamada de l”affaire Oprah – a revogação do convite a Franzen por aquela figura temível com base numa acusação de elitismo grave, durante o qual ele sobressaiu como um esnobe para as massas e um ignorante para o meio literário. Ele não parecia saber onde queria estar, e, com isso, renunciando tanto aos intelectuais como ao povão, sem agradar a ninguém por querer agradar a todo o mundo, ele conseguiu encalhar numa zona desmilitarizada individual que personificava sua ambiguidade.



Desse conflito e de uma série de cognatos – emocional, político, geográfico, até – Franzen concebeu seu novo livro. Freedom (publicado no Brasil como Liberdade) apoia-se num triângulo amoroso. Walter é “o cara mais amável de Minnesota”, um advogado e ativista ambiental que cresceu como filho de uma mãe martirizada e um pai alcoólico e agressivo nas cercanias soturnas da Iron Range. Patty é a esposa que ele conheceu na escola, uma atleta hipercompetitiva que, emocionalmente tolhida por uma infância negligenciada numa família autocentrada de gente bem-sucedida de Nova York, estava à espera de alguém para tomar conta dela. Richard é o curinga, o melhor amigo de Walter: um roqueiro indie carismático e fútil, com um rosto assustadoramente bonito que o deixa parecido com Muamar Kadafi. O casamento desandado de Walter e Patty, a amizade complexamente competitiva de Walter e Richard, o caso amoroso muito adiado, intermitente e absolutamente tortuoso de Patty e Richard – isso constitui o centro da trama juntamente com a história do filho de Walter e Patty, que se vê envolvido, em seu bairro revitalizado de Saint Paul, com a garota trabalhadora da casa ao lado.



Os leitores de As Correções reconhecerão alguns temas-chave: dinâmica familiar e seu impacto em filhos adultos, o Meio-Oeste e o Leste urbano (Walter e Patty se mudam para Washington, D. C.; Richard para Jersey City), os infortúnios da classe média ascendente; o conflito entre dever e prazer. Franzen continua soberbo na exposição da textura psicológica da experiência cotidiana: as oscilações da alma, as lutas pelo poder na vida doméstica, as jogadas de xadrez do comportamento amoroso. Mas se o terreno, e a mente que o mapeia, são aqueles do romance anterior, os contornos são diferentes. As Correções enfoca as relações filiais, Liberdade as românticas, incluindo o caso de Walter com sua assistente indiano-americana bem jovem (nomeada, com um aceno a Nabokov, Lalitha). Em As Correções, contemporâneos (ele nasceu em 1959) ainda estão lidando com seus pais. Em Liberdade, eles estão lidando não só uns com os outros, mas também com seus próprios filhos adultos.



O enfoque numa única família, e a convergência da trama para um jantar de Natal, dá forma à amplitude intelectual do romance anterior. Aqui, um elenco mais frouxamente estruturado de personagens e um esquema cronológico menos definido afligem uma narrativa de extensão comparável com uma sensação de esticamento. A história começa por volta de 1980 e avança, com flashbacks, até 2004, depois serpenteia o resto do percurso até o presente. Franzen parece reconhecer o problema da organização. O romance abre do ponto de vista dos vizinhos de Walter e Patty – uma sequência de 32 páginas com a trama perfeita de um conto – muda para o diário de Patty (escrito por ela a pedido de seu terapeuta), segue com uma longa seção intermediária que é intitulada 2004, mas cobre, na verdade, um período de vários anos, retorna ao diário de Patty, e termina, mais uma vez, da perspectiva de um vizinho.



A arquitetura do livro é impressionante, mas não resolve de fato os problema da dispersão. Falta ao romance o controle de As Correções, como se evidencia também nos materiais da trama. Nada da imaginação travessa do livro anterior. As Correções era sombrio, mas a própria brutalidade de sua candura resultava num humor rude que não está presente aqui. Liberdade fica no nível das passagens menos bem-sucedidas do romance anterior. A julgar pelos dois volumes de não ficção que Franzen publicou desde As Correções – How to Be Alone (2002), uma coleção de ensaios, e A Zona do Desconforto (2006), um livro de memórias -, o novo romance dramatiza toda uma série de conflitos entrelaçados que vão até a compreensão por Franzen de seu lugar no mundo.



Richard, o roqueiro, trava a batalha de Status e Contrato. Celebrado por sua obstinada retidão estética durante os anos de obscuridade por uma coterie de fãs, Richard vê sua identidade implodir após conquistar um sucesso popular inesperado por volta da mesma idade (passando dos 40) e mesma época (as vizinhanças do 11 de Setembro) que Franzen. Acuado por um jovem fã, Richard larga uma peroração exibicionista improvisada sobre a hipocrisia da subversão pop. Os dilemas profissionais de Walter são muito óbvios. Um bilionário texano observador de pássaros quer gastar uma fortuna para proteger sua espécie favorita, a mariquita-azul, adquirindo uma extensão de terras desabitadas em West Virginia, e Walter, vendo uma chance de realmente fazer alguma coisa por uma mudança, concorda em dirigir a operação. (A trama sai diretamente dos próprios compromissos ambientais de Franzen e de sua aglutinação em torno da questão do hábitat aviário, tal como se lê em A Zona do Desconforto, que fala de sua paixão como observador de pássaros.)



O filho de Walter e Patty, Joey, um jovem republicano em formação que se envolve num esquema duvidoso para fornecer peças de caminhão para a invasão iraquiana, triplica a questão de Franzen. Quando se consegue pôr os próprios ideais em prática, eles são desfigurados pelos sistemas nos quais precisam operar. Mas há uma oposição mais profunda em operação aqui também. Pureza ideológica, estética ou alguma outra, também podem ser uma fachada para a misantropia. Recusar-se a se engajar em sistemas pode ser apenas um desculpa para se recusar a engajar-se com pessoas. Por sistema, leia-se, aliás, comunidade. O Homo franzenius é com frequência um solitário. Joey resiste à devoção de sua namorada. A galinhagem de Richard evita a intimidade. Após o colapso de seus planos em West Virginia, Walter se enfurna numa cabana por seis anos. Franzen escreveu sobre seu próprio impulso ao autoisolamento e admite que seu entusiasmo inicial pela natureza foi, em grande parte, um anseio para se afastar de outras pessoas. Na geografia da imaginação de Franzen, comunidade está para solidão como Meio-Oeste está para Nova York, o lugar onde ele cresceu está para o lugar onde agora vive.



A depressão está em toda parte em Liberdade, como está em As Correções. Ela é hereditária, na análise de Franzen, mas não somente isso. Se depressão é agressão voltada para dentro, e raiva é agressão voltada para fora, então mesmo Walter, o paradigma da “amabilidade”, tem outra opção, e todo o fiasco em West Virginia, junto com o colapso de seu casamento, se torna uma oportunidade estendida para exercitá-la.



Depressão e raiva: são esses os polos da dialética emocional de Franzen. Alfred e Gary em As Correções, Walter e Patty aqui – todos eles oscilam nesse pêndulo. E assim como a depressão como sentimento corresponde à amabilidade como estratégia social, a raiva corresponde ao oposto de ser amável: dizer a verdade. Esse é o papel autoatribuído a Walter: ser um panaca ou, em outras palavras, ser honesto. Ele é o sujeito que vê através do egoísmo de Patty, na escola, e lhe diz para deixar de manipular Walter. Ele é o sujeito que interpela Walter sobre seus sentimentos pela adorável Lalitha. E ele, é claro, é o artista, o narrador da verdade profissional.



E assim o círculo se fecha, de volta a Status versus Contrato, arte como honestidade brutal versus arte como construção de comunidade. O notável na escrita de Franzen é a maneira como ela consegue operar em ambos os lados da linha divisória. Sua prosa é exemplarmente bonita. Mas a beleza oculta uma profunda raiva política, que tem como mira seu próprio público, a classe média liberal. Franzen é o sujeito que sorri para você toda manhã, mas secretamente o odeia.



Mas a amabilidade e a raiva são igualmente genuínas e, para Franzen, igualmente válidas. Por raivoso que ele seja conosco, ele é igualmente raivoso consigo mesmo. Porque é amável, ele sente as pretensões de ambos os lados: de princípio e concessão, solidão e comunidade, Nova York e Meio-Oeste.



Solidão e autovalorização, raiva ideológica e pureza ideológica: todas convincentes, todas em última análise imaturas. As histórias de Gary, Chip e Denise em As Correções, de Richard e Patty aqui, tratam todas da luta, contra as próprias inclinações e a tendência da cultura, para crescer. Quase só entre escritores proeminentes que atingiram a maturidade nas duas últimas décadas – ou, ao menos, os homens proeminentes -, Franzen se comprometeu com os valores da maturidade: responsabilidade, moderação, trabalho duro, autocontrole. O fato de serem quintessencialmente valores do Meio-Oeste não é, decerto, acidental. O fato de Franzen lutar com eles é o que torna seu drama interior digno de acompanhamento. Quase se pode sentir ele não querendo mais ser um adulto imaturo americano.



Mas maturidade (como Contrato, e amabilidade, e comunidade) é finalmente o que ganha sua anuência, e a grande questão de Liberdade é que ela deve receber nossa anuência política também. O desejo de liberdade, na visão de Franzen, não é nada além de um anseio adolescente de irresponsabilidade e incoerência. O romance está cheio de pessoas cuja liberdade não só as torna miseráveis, como torna miseráveis todas as que as cercam também. A liberdade americana, o romance insiste, é a ruína do mundo, e a liberdade humana é a ruína do planeta. Isso não é uma coisa bonita de se ouvir, e o polemismo prejudica sua realização artística, mas é certamente algo que não conseguimos ouvir com muita frequência. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK



WILLIAM DERESIEWICZ É AUTOR DE A JANE AUSTEN EDUCATION (PENGUIN PRESS 2011)

William Deresiewicz
 O Estado de S.Paulo.28/05/11

A Nova expressão do romance americano

Jonathan Franzen, autor de Liberdade, explica o seu território literário preferido, o Meio-Oeste dos EUA, fala do uso de diferentes pontos de vista em sua ficção e defende o hábito da leitura diante do avanço da web




O endereço foi uma surpresa. Como o mais celebrado romancista americano de sua geração foi parar num prédio do Upper East Side, na esquina da Avenida Lexington? Longe dos restaurantes onde seus pares discutem e bebem? Não demorei a descobrir. O homem alto, que, havia pouco, me recebera na entrada do apartamento pisando o chão só de meias, se desmanchou num sorriso de gratidão quando, ao notar seu par de sapatos na porta, ofereci para tirar os meus também. Pergunto a Jonathan Franzen se lhe incomodam os modismos. A resposta: “Há algo menos cool do que o meu endereço em Manhattan?”. Sou obrigada a concordar, tendo fugido da mesma rua tão logo deixei de depender da proximidade de uma certa escola de primeiro grau.



Franzen, 51 anos, tem o olhar preocupado de quem se tornou o alvo de, nas suas palavras, uma carga de tijolos de louvor. Seu quarto romance, Liberdade, que chega ao Brasil – ele não virá lançá-lo aqui, mas garante presença na Flip de 2012 -, faz tanto sucesso dos dois lados do Atlântico que o autor já espera “pagar caro por isso” quando começar o próximo. Em tempo: o próximo livro de Franzen, Masafuera, não é um romance, é uma coleção de ensaios e já está a salvo de sua angústia, na editora.



Desde que Liberdade foi lançado nos Estados Unidos, em 2010, Franzen cumpriu uma turnê publicitária condizente com um astro das letras. Quem acompanhou seu esforço para sobreviver ao sucesso estrondoso de As Correções, em 2001, sucedido pelo apropriadamente intitulado livro de memórias A Zona do Desconforto, não deixa de notar um homem conformado com a fama que, ele admite, transformou sua vida.



Mas, além de uma ida à pedicure antes de se dirigir a seu apartamento, recomendo aos futuros visitantes atenção esmerada com as palavras. Como um artesão da escrita, ele monitora cada uma emitida na sua presença e sua reticência em busca do nirvana semântico pode abrir um intervalo de 10 segundos entre um sujeito e um predicado. Ao lembrar a Franzen que já nos encontramos outro dia, brevemente, ele enfatiza: “Sim, brevemente”. Ao pedir para que diga uma segunda vez para a gravação a resposta sobre os muitos significados da “liberdade” do título de seu romance, sou comunicada de que essa foi a minha pergunta “menos favorita”. Mas eu logo me lembraria que estava diante de um cavalheiro do Meio-Oeste que detesta ser indagado sobre o que isso quer dizer. Numa gentileza típica de Midwesterners, ele oferece a explicação. Mais do que isso, não deixa uma pergunta da entrevista a seguir sem resposta. Tijolos, afinal, servem para construir alguma coisa.



O seu romance, apesar de seguir a história de uma família por 30 anos, é rico em fatos da última década. Houve um momento específico em que a política americana foi decisiva para dar a partida da trama?



Sim, houve vários momentos. Provavelmente a decisão de invadir o Iraque, acima de tudo. O problema é que, toda vez que eu queria decolar, com um tema político, eu ficava paralisado pela minha própria raiva, pelo meu próprio partidarismo, como um democrata de esquerda. Não conseguia me separar das minhas convicções e a minha angústia como um americano por causa do que o governo estava fazendo. Então, não me parece acidental o fato de ter começado a escrever uma semana antes de Obama ser eleito, quando ficou claro que ele ia ganhar. Algo me fez relaxar e consegui me despreocupar de questões políticas e retornar ao trabalho de criar histórias complicadas e ambíguas. Até aquele momento, o que eu já tinha como trama era apenas a família da protagonista Patty e sua má experiência com o liberalismo americano. Eu tentava, há tempos, distribuir igualmente as ofensas à esquerda e à direita, mas só quando percebi que Bush ia embora me pareceu OK passar um ano escrevendo um romance.



O que é o seu Meio-Oeste, um elemento psicológico tão importante da sua ficção?



Eu acho que o Meio-Oeste não é um lugar, é uma síntese. As pessoas se identificam como midwesterners e têm algo em mente quando dizem isso. Se você mora na Califórnia ou em Nova York, também quer dizer algo quando se refere ao Meio-Oeste. Mas não tenho certeza se há um conjunto de características do Midwesterner que não são compartilhadas em outros locais do país. Pode ser um termo sem significado.



Mas por que você diz que por um lado é um “bom rapaz do Meio-Oeste”?



É quase uma redundância; se refere à ideia de que as pessoas nas costas Leste e Oeste são agressivas. O estereótipo do Midwesterner é extremamente bonzinho.



E não gosta de pretensão…



Isso mesmo, é despretensioso. Acho que podemos argumentar que F. Scott Fitzgerald e Sinclair Lewis inventaram o Meio-Oeste e o fizeram como pessoas que deixaram o lugar. Então, o Meio-Oeste parece se revelar só quando você vai embora. Hemingway foi embora, Kurt Vonnegut também. E o David Foster Wallace – todo mundo vai embora. E aí você percebe que vê as costas com um olhar diferente de quem cresceu lá e, desta posição, começa a argumentar que há algo sobre o Meio-Oeste.



Por que você gosta de usar múltiplos pontos de vista na sua narração?



Isso é muito natural para mim. Eu cresci numa casa com quatro vozes muito fortes. E cada uma muito diferente e todas em conflito entre elas. E todos falavam comigo, me incluíam na sua versão da história da família. Mas as versões estavam em grande conflito. Então acho que cresci, como o caçula, aprendendo a falar quatro línguas diferentes, olhando o mundo com quatro perspectivas diferentes. Seria difícil para mim um romance numa só voz narrativa.



Você comentou que cresceu como uma criança num mundo de adultos. Hoje, a cultura corteja segmentos jovens como se ser criança ou adolescente fossem um objetivo e não uma etapa do crescimento. Em Liberdade, nós vemos adultos se comportando como crianças e seus filhos tendo que amadurecer para compensar. Foi a sua experiência pessoal?



Eu pude observar isso. Há várias coisas. Os anos 60 inventaram a juventude e fizeram dela um território de acontecimentos na cultura. Foi algo liderado pela indústria da publicidade e muito útil para uma sociedade de consumo que gosta de transformar as pessoas em adolescentes eternos. Então, você começa por antecipar a adolescência – crianças de 8 anos já têm que se preocupar se usam roupas cool, com os aparelhos que têm que comprar e, no outro extremo, não termina aos 20 anos, vai continuando até os 65! Foi um fenômeno inventado pelos baby boomers. Há essa anulação da diferença de idade que, quando eu crescia, ainda era crucial. Eu não gostava especialmente de ser criança, queria me tornar adulto logo, mas desfrutava dos privilégios de ser criança. E me sentia grato porque meus pais faziam seu papel de adultos. Essa falta de distinção entre o que é ser adulto e ser criança na cultura me assusta.



A personagem Patty, a certa altura, critica a geração do filho, diz como deve ser difícil, por um momento, ter que sair do seu próprio mundo de fones de ouvido e gadgets pessoais. Muitos perguntam se o maciço assalto aos sentidos vai afetar o hábito da leitura solitária, que exige do leitor se desligar da internet e dos aparelhos.



Acho que ainda há muitos leitores. A minha visão é quase oposta. Muitas pessoas estão oprimidas por este mundo virtual e pelo bombardeio de comunicações. Nem todos, é claro. À medida que aumenta a diferença entre ler um livro e as outras experiências de hoje, o livro emerge como uma alternativa real e deve ser mais atraente por causa disso. É um refúgio. Num bom romance, você consegue se reconhecer e pensar: “Eu poderia estar nessa situação”. Não é uma confusão de identidade, mas uma alternativa. Escrever e ler um romance tem muito a ver com uma perda voluntária do eu – o oposto de se sentir no centro do mundo virtual.



Quando o personagem músico Richard Katz dá uma entrevista sarcástica para o estudante adolescente sobre a canção avulsa em mp3, isso reflete o que você vê acontecendo com a música?



Ah, sim. A música está num lugar ruim, acho. O arquivo mp3 transformou completamente o uso cultural da música. E fez dela uma espécie de goma de mascar e também um tipo de droga, muito longe de uma experiência singular e coerente. Quem ouve um álbum completo hoje em dia? E quem grava um bom álbum completo? Poucos.



Mas exatamente porque os músicos não conseguem sobreviver com gravações, eles estão em tours constante – há muito mais música ao vivo.



Eu sei disso. Pode ser uma coisa boa. Mas é como dizer que há mais bares para tomar café. Eu não acho que a música ao vivo seja uma atividade que carregue significância. Você pode desfrutar dela. O que estou dizendo pode ser anátema para um público brasileiro. Porém não há conteúdo. É um prazer, mas, e daí? Quando você vê um músico que um dia respeitou tendo sua obra como trilha de comerciais para produtos deploráveis, você percebe que a música não tem centro moral e não tem mais conteúdo intelectual. É pura diversão.



Quando o jovem personagem Joey enfrenta dificuldades e se vê sozinho, ele pensa que deve satisfações ao seu pai “severo e com princípios”. O que há de especial na necessidade de um filho ser aceito pelo pai – algo que me parece ser um elemento essencial do seu romance?



No meu caso não foi assim, o meu pai me aceitava. Ele era severo, duro, assustador. Minha mãe era bem mais militante na sua desaprovação. Ele era rígido, mas doce. O problema que você cita era mais o caso de um dos meus irmãos. Há um tipo de história que vai sempre me fazer chorar – qualquer história sobre um pai e um filho superando uma separação por desavença.



Por quê?



Bem, não queremos traficar estereótipos entre os sexos….



Fique à vontade, nós brasileiros temos tolerância alta para o politicamente incorreto.



Tradicionalmente, o esforço de construir redes de relacionamento é deixado com as mulheres, e tradicionalmente, os homens vão à luta para se definir por conta própria. Não sei se deve ser ou tem que ser assim, no entanto você olha para as outras espécies e, geralmente, as fêmeas estão organizando o lar e os machos estão por aí lutando uns com os outros. Pode chamar de conflito edipiano, não importa, o filho sempre está lutando por um certo espaço. E, por causa dessa história de conflito entre pais e filhos, eu fico muito emocionado quando eles superam isso.



Você já se referiu aos seus dois primeiros romances, The 27th City e Strong Motion como produtos de um período da sua vida em que queria a todo custo impedir qualquer risco de sentimentalismo na escrita. E que, com a doença e morte do seu pai, ao escrever As Correções, queria experimentar a perda de controle.



Eu ainda me preocupo em evitar o sentimentalismo – que é diferente de sentimento, claro. Sim, havia muita ironia e sátira nos dois primeiros livros. E me remete ao que acabamos de mencionar. Meu pai era esta presença masculina tão contida e inteligente e eu, o menino da família, queria me afirmar intelectualmente através do meu trabalho, ser invulnerável a qualquer ataque emocional. À medida que nos tornamos mais velhos, podemos assumir mais riscos.

Lúcia Guimarães
O Estado de S.Paulo.28/05/11

Alquimia poética e utopia

São admiráveis estes quatro versos de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor, / finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente”. O paradoxo desconfia da lógica da razão e diz que, ao mascarar a dor autenticamente sentida com o fingimento poético, a voz do poeta se cola à verdade. Esta não tem o percurso pavimentado pela espontaneidade do sujeito e, sim, pela sua predisposição salutar ao fingimento retórico, que escreve a boa poesia. Ao divergir do senso comum, o poeta distorce a emoção da dor sentida para guardá-la no coração e fingi-la com letras na página em branco. Ali a sente mais realisticamente, revela-a e a transmite ao leitor. Alquimia da arte.



O escritor modernista brasileiro também tem o fingimento como alicerce da poesia. No entanto, de Fernando Pessoa se distancia por colocar como epicentro da escrita poética não a distorção da dor sentida, mas a desconfiança em relação ao nível de exigência formal requerido do adulto no uso da língua nacional e da linguagem poética. Em rebeldia contra o saber escolar que o constituiu como cidadão e contra a tradição literária eurocêntrica que o constituía como artista da palavra, o modernista finge observar o mundo com olhos de criança e finge imitá-la na redação. Contraditória e autenticamente, estaria escrevendo poesia de e para cidadão adulto brasileiro. Leia-se o livro Primeiro Caderno do Alumno de Poesia Oswald de Andrade (1927), ou entenda-se a docência às avessas no poema 3 de Maio: “Aprendi com meu filho de dez anos / Que a poesia é a descoberta / Das coisas que nunca vi”.



Ao distorcer o saber proporcionado pela formação educacional em vigor e ao rejeitar o ouvido poético afinado pela métrica e a rima, ao fingir-se de criança e escrever como ela, o poema modernista se cola ao autenticamente pensado e vivido. O fingimento evita que a escrita poética caia em outro e nefasto sistema de fingimento – o do artista comprometido com o artesanato de ourives e o da retórica, com a estética parnasiana.



O caderno do aluno Oswald não se assemelha ao carnê em que o viajante europeu anotou observações e pensamentos à espera da versão apurada e definitiva. Tampouco é metáfora para versos que traduzem a experiência subjetiva da desigualdade negra sentida pelo martinicano Aimé Césaire em terras metropolitanas (Cahier d”Un Retour au Pays Natal, 1939). O caderno escolar de Oswald tem em comum com os dois exemplos o trato com o desconhecido, que se expressa pelo desejo de “ver com olhos livres” e de sentir a “alegria dos que não sabem e descobrem” (como está no Manifesto da poesia pau-brasil). Bem acabada, a linguagem poética do caderno de Oswald é, no entanto, mal torneada por ser fingidamente inocente e ingênua, decidida a desconcertar o leitor pela varinha de condão do humor e da surpresa. O poeta não está onde você acredita que ele deveria estar.



O poema se arrisca quando acopla ao artista da palavra a voz crítica do intelectual. Unidos, escancaram em escrita o jogo político-social e econômico dominante na jovem nação. O povo brasileiro abre alas na poesia e pede passagem. Pelo seu tosco e autêntico modo de sentir e de pensar e pelo seu linguajar precário, é semelhante à criança. Um denominador comum sela o encontro – “a contribuição milionária de todos os erros”. O dado e tido como certo para o Brasil é errado. O dado e tido como errado é certo. O adulto poeta finge ser criança e o intelectual maduro finge ser povo. Ao apadrinhar (to patronise, em inglês) criança e povo, o poema se quer força de resgate da nova geração e da nova cidadania. Desenha utopias verde-amarelas. O paradoxo poético de Pessoa se expressa pelo erro correto, moeda que, desvalorizada pelo senso comum europeizado, financia a futura e boa cidadania brasileira. Leia-se Pronominais: “Dê-me um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro”.



No cenário poético da infância, Manuel Bandeira sobrepõe ao erro correto o sabor e o saber da experiência proporcionada ao cidadão brasileiro pelo linguajar do povo. Lê-se na Evocação do Recife: “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros / Vinha da boca do povo na língua errada do povo / Língua certa do povo / Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil”. Na mesma cena infantil do sabor/saber popular, Carlos Drummond afina pelo afeto a voz da empregada doméstica e, acertada e contraditoriamente, a situa em etnia e classe diferentes. Leiamos trecho do poema intitulado Infância: “No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu / A ninar nos longes da senzala – e nunca se esquece / Chamava para o café. / Café preto que nem a preta velha / Café gostoso / Café bom”.



Em todos os poemas citados a (quase total) ausência de pontuação reitera a necessidade de a sintaxe modernista ser fonética. Em Pontuação e Poesia, Drummond observa: “A pontuação regular, iluminando igualmente todos os ângulos da superfície poética, impede que se destaque algum de seus acidentes mais característicos”. Em outro texto da época, Drummond afirma que “o preconceituoso procura o acessório, que não interessa e foi removido”.



A alquimia poética do Modernismo é nitidamente pós-colonial, fingida e realisticamente utópica. Deveria ter sido relegada à década de 1920 em virtude das várias etapas de modernização política, social e econômica por que passou a nação brasileira depois dos anos 1930. A polêmica em torno do livro Por Uma Vida Melhor, de Heloísa Ramos, demonstra que, no Brasil, a educação das massas ainda é uma utopia verde-amarela. Diz o mundo e lamenta o projeto do pré-sal.


Silviano Santiago
 O Estado de S.Paulo.28/05/11

POBREZA

Em livro sobre "favelização" mundial, americano diz que expansão das cidades está no limite e critica políticas brasileiras



"Fronteira urbana" chegou ao fim, diz Davis

FABIANO MAISONNAVE

DA REPORTAGEM LOCAL

Em Nova Déli, na Índia, as favelas incham 400 mil moradores por ano. Quilômetros abaixo, em Mumbai, os favelados já somam 12 milhões de pessoas. Em proporção, o primeiro lugar fica com a Etiópia, onde 99,4% de sua população urbana mora em habitações precárias. E nos cortiços de Lima, no Peru, a média é de 93 pessoas para cada latrina.

Esses e muitos outros exemplos compõem o quadro apocalíptico do livro "Planet of Slums" (planeta das favelas), publicado neste mês nos EUA. Nele, o ensaísta Mike Davis analisa por que o fenômeno da migração para a área urbana se transformou num caos de cerca de 200 mil favelas e 1 bilhão de pessoas amontoados pelos países do Terceiro Mundo.

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O Brasil e a África do Sul, com os EUA não muito longe, lideram no mundo a tentativa de substituir a segurança físico-arquitetônica para as classe médias pela justiça social aos pobres

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O problema-chave, segundo Davis, é que as grandes cidades do Terceiro Mundo não estão mais crescendo empurradas pela demanda por mão-de-obra, mas se dilatando pela reprodução da miséria, sem uma resposta adequada do poder público.

O resultado é que o processo de favelização virou sinônimo de urbanização. Um dos exemplos do livro é São Paulo: em 1973, as favelas paulistanas abrigavam apenas 1,2% da população. Ao longo dos anos 1990, o salto foi para 16,4% de seus moradores.

Ex-caminhoneiro e de formação marxista, Davis, 60, ganhou notoriedade depois da publicação de "City of Quartz" (cidade do quartzo), um estudo já considerado clássico sobre a história de Los Angeles. Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida à Folha:



Folha - Seu novo livro descreve um processo aparentemente irreversível de favelização dos países mais pobres. Chegamos a um ponto sem volta para resolver a questão habitacional?

Mike Davis - Claramente, de acordo com especialistas em habitação de quase todos os países pobres, chegamos ao final da fronteira de áreas livres ou quase livres para ocupação. Esse é um fato da nossa época, sobretudo porque tantos governos e instituições internacionais continuam com a idéia de que o pobre tem acesso à terra e pode resolver a crise habitacional por meio de sua própria determinação e engenho. Mas o dia da ocupação heróica acabou. A ocupação tradicional, definida estritamente, é agora apenas possível em locais residuais e perigosos, onde inundação, falhas no terreno ou proximidade a depósitos tóxicos fazem com que a área seja quase sem valor, e a vida, uma constante luta contra o desastre. Em todos os outros lugares, a terra periférica é uma mercadoria -legal ou ilegalmente pertencente a especuladores, políticos ou entidades tribais que vendem a terra para residentes pobres.

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As pesquisas mostram uma convergência perigosa de custos habitacionais crescentes (o fim da fronteira e da terra ocupável) com a supersaturação de setores econômicos informais

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Essa "urbanização pirata", como tem sido chamada várias vezes, é efetivamente a privatização das ocupações. Pessoas muito pobres, sejam filhas da cidade ou migrantes do interior, atualmente alugam seu pequeno barraco (geralmente de moradores de favela mais antigos e ligeiramente mais ricos) ou são forçadas a construir em lugares precários ou nas regiões limítrofes, onde os custos de transporte anulam as vantagem da terra livre ou barata. Na habitação, assim como na economia informal, testemunhamos o que pode ser chamado de "marginalização dentro da marginalidade".

Folha - O sr. afirma que, em algumas cidades, já é impreciso o uso do termo periferia, pois as favelas se tornaram o centro da vida urbana. O que acontece quando uma cidade atinge esse ponto?

Davis - Ninguém sabe. A periferia, obviamente, assume diferentes formas. Em alguns casos, os pobres estão seguindo os empregos, o que, suponho é a melhor opção. Em outros casos, estão simplesmente exilados pelo alto custo das áreas ou expulsos pela renovação das favelas. O deslocamento de uma borda para o centro absorve crescente e quase insustentável quantidade de tempo e dinheiro. Em Nairóbi e em outras cidades africanas e asiáticas, os pobres gastam mais em transporte do que em moradia, medicamento ou em educação para suas crianças. O grande problema da forma urbana é esta: urbanização que não consegue criar urbanismo, que simplesmente empurra as pessoas mais para fora (consumindo valiosas terras agricultáveis e reservas ambientais no processo) e fracassa em fornecer qualquer aparato de integração da cidade tradicional. Todas as contradições da suburbanização dos países ricos se tornam exponencialmente maiores nas cidades pobres.

Folha - Recentemente o Exército interveio em algumas favelas do Rio, atraindo apoio de parte da classe média. A segurança pública deveria ser a grande prioridade?

Davis - Em primeiro lugar, "segurança pública" é uma definição enganadora. Operações militares e prisões em massa simplesmente agravam a insegurança urbana no longo prazo. Ao menos que se esteja preparado para exterminar classes inteiras de pessoas, a criminalização da desigualdade simplesmente armazena o problema em prisões desumanas, onde finalmente será exportado de volta para as ruas de uma forma mais violenta. Além disso, o crime de rua é sempre pior onde a polícia é mais corrupta e e sem regras. Os maus policiais são o maior problema criminal do mundo. Na forma como entendo o Brasil, a raiz mais profunda da "insegurança" -à parte dos níveis fantásticos de desigualdade socioeconômica- é que os pobres universalmente vêem a polícia como incorrigivelmente corrupta, predadores ao invés de protetores. A ditadura declarou guerra contra as favelas porque as viam como incubadoras da subversão; a ditadura foi substituída pela democracia burguesa, mas a guerra nas favelas tem continuado de forma incessante, e os militares mantiveram muito de sua liberdade para operar sem consideração aos direitos humanos.

Claramente o Brasil e a África do Sul, com os EUA não muito longe, lideram no mundo a tentativa de substituir a segurança físico-arquitetônica para as classe médias pela justiça social aos pobres. Obviamente, é um círculo vicioso: quanto mais as classes médias se retraem do espaço urbano público e cidadão -ou quanto mais eles permitem que a polícia e os guardas privados ajam foram da lei- mais os pobres acreditarão que a cidade está em um estado de guerra, com as gangues tão legítimas como governo quanto o Estado.

Folha - Como o sr. explica o paradoxo, identificado no seu livro, de que muitas cidades do Terceiro Mundo cresceram apesar da decadência econômica?

Davis - Ninguém pode explicar totalmente esse paradoxo, mas a resposta simples é a subdivisão da pobreza -o que chamo de "involução urbana". À medida que as pessoas se amontoam em nichos de sobrevivência informal -ambulantes, diaristas, prostituição, serviço doméstico, pequenos crimes etc.- mais pobre a massa se torna. Sei que [o economista peruano Hernando] De Soto e outros populistas neoliberais acreditam que o microempreeendedorismo pode fazer milagres, mas isso é apenas verdade em casos isolados. Sempre será possível identificar milionários que eram mendigos anos antes, mas isso negligencia o número muito maior de pessoas que eram operários e funcionários públicos e hoje são mendigos. Não há evidência em escala macro de que a economia informal é um motor de crescimento ou um futuro viável para os pobres da cidade.

O meu livro argumenta que, pelo contrário, as pesquisas mostram uma convergência perigosa de custos habitacionais crescentes (o fim da fronteira e da terra ocupável) com a supersaturação de setores econômicos informais (o problema da "involução"). Então o que acontece? O pior exemplo é Kinshasa (Congo, ex-Zaire), uma cidade com grande espírito, mas em condições indescritíveis de negligência, onde as crianças são deixadas na rua porque as famílias não podem mais ter um nível mínimo de sobrevivência.

Folha - O sr. cita um programa da administração do PT em São Paulo para mostrar o fracasso da política apoiada pelo Banco Mundial (Bird) de melhorar favelas. Por que não é um caminho viável?

Davis -As estratégias contemporâneas de habitação e desenvolvimento econômico adoram uma estratégia "de perfumaria". Deixando de lado o números de exemplos em que "favelas-modelo" financiadas pelo Bird se transformaram em tudo menos em modelo, os sucessos dessa estratégia são quase insignificantes na escala macro: levaria séculos para alcançar justiça habitacional ou "empoderamento" nesse ritmo. No melhor caso, o Bird e os governos reformistas fornecem apenas recursos suficientes para promover a mobilidade econômica de uma pequena fração da classe trabalhadora: recompensar membros do partido, cooptar possíveis ativistas e vencer a próxima eleição (ou dar a ONGs colaboradoras credenciais para restituir aos seus doadores). É um mundo de pequenas fábricas de filantropia e auto-ajuda que dificilmente faz a sociedade progredir.

Folha - . Apesar do amplo espectro ideológico dos governos do Terceiro Mundo, parece que o sr. não encontrou nenhuma política habitacional eficiente. É um sinal de que a esquerda e a direita falharam ou a culpa é sobretudo do capitalismo globalizado?

Davis -De certa forma, você me pegou aqui. A solução -de forma abstrata, pelo menos-tem de ser um sistema que preserva todos os elementos criativos de autoconstrução com um aumento radical de investimento social (na forma de compra de materiais, serviços de engenharia e desenvolvimento de infra-estrutura). Não há uma forma prática de solucionar a crise urbana em lugar nenhum sem uma verdadeira taxação progressiva, controle de desigualdade e do consumo de ostentação e controles draconianos sobre a especulação imobiliária. Isso ocorreu em Cuba no início (embora desviado pela crescente dependência dos modelos soviéticos e pelo embargo americano) e está acontecendo em Caracas, de certa forma, hoje. Posso estar errado, mas não creio que o PT já teve uma posição ou a vontade de fazer uma reforma fiscal radical ou limitar os privilégios dos ricos.

Folha - O sr. argumenta que a "manhattanização" (verticalização) das favelas cariocas é parte de uma tendência mundial de falta de espaços nas metrópoles. Quais os problemas -sociais e ecológicos- que isso acarreta?

Davis - A densificação é positiva porque é ambientalmente eficiente. A densificação é ruim quando acompanhada com o espalhamento e a destruição do espaço verde e dos pulmões da cidade. Rio e Istambul são exemplos fascinantes onde favelas baixas e "gecekondus" se tornaram arquipélagos de mini-Manhattans. Este é um desafio para planejadores e a arquitetura: a favela que almejam subir para o céu.

Os problemas são imensos, mas as oportunidades também. Todas as cidades precisam de um laboratório do futuro -um bairro onde crianças, poetas e utopistas possam brincar com o futuro. O Rio poderia congelar os aluguéis e os valores de propriedade de uma favela, retirar a polícia e convidar os cidadãos a perseguir seus sonhos. Uma favela convertida em estudo de caso, em que os arquitetos e urbanistas entram e saem, mas deixam o poder de decisão nas mãos dos moradores. Com o tempo, as pessoas vão desenvolver fantásticas soluções e projetos, que os outros podem repetir ou melhorar. Talvez até os ricos sejam tentados a se mudar de seus complexos fortificados.

Folha - De acordo com o sr., o racismo teve um papel importante na definição sobre quem mora onde. Qual é a importância da discriminação racial para a "favelização"?

Davis -A raça, sempre. Mas as favelas, precisamente por causa de sua energia inter-racial e intercultural, são os dínamos de nossa cultura planetária. Em Los Angeles, as indústrias da música e da moda mantêm espiões nos guetos e "barrios" para identificar as tendências que irão eventualmente se espalhar para os subúrbios e as classes médias. Além disso, a sensibilidade da diáspora negra fornece uma estrutura de sentimento para a juventude pobre urbana (e muitos dos mais ricos) em cidades de quase todos os lugares. As favelas e cortiços são incrivelmente locais e paroquiais, mas também são universais.