sábado, 28 de maio de 2011

A Nova expressão do romance americano

Jonathan Franzen, autor de Liberdade, explica o seu território literário preferido, o Meio-Oeste dos EUA, fala do uso de diferentes pontos de vista em sua ficção e defende o hábito da leitura diante do avanço da web




O endereço foi uma surpresa. Como o mais celebrado romancista americano de sua geração foi parar num prédio do Upper East Side, na esquina da Avenida Lexington? Longe dos restaurantes onde seus pares discutem e bebem? Não demorei a descobrir. O homem alto, que, havia pouco, me recebera na entrada do apartamento pisando o chão só de meias, se desmanchou num sorriso de gratidão quando, ao notar seu par de sapatos na porta, ofereci para tirar os meus também. Pergunto a Jonathan Franzen se lhe incomodam os modismos. A resposta: “Há algo menos cool do que o meu endereço em Manhattan?”. Sou obrigada a concordar, tendo fugido da mesma rua tão logo deixei de depender da proximidade de uma certa escola de primeiro grau.



Franzen, 51 anos, tem o olhar preocupado de quem se tornou o alvo de, nas suas palavras, uma carga de tijolos de louvor. Seu quarto romance, Liberdade, que chega ao Brasil – ele não virá lançá-lo aqui, mas garante presença na Flip de 2012 -, faz tanto sucesso dos dois lados do Atlântico que o autor já espera “pagar caro por isso” quando começar o próximo. Em tempo: o próximo livro de Franzen, Masafuera, não é um romance, é uma coleção de ensaios e já está a salvo de sua angústia, na editora.



Desde que Liberdade foi lançado nos Estados Unidos, em 2010, Franzen cumpriu uma turnê publicitária condizente com um astro das letras. Quem acompanhou seu esforço para sobreviver ao sucesso estrondoso de As Correções, em 2001, sucedido pelo apropriadamente intitulado livro de memórias A Zona do Desconforto, não deixa de notar um homem conformado com a fama que, ele admite, transformou sua vida.



Mas, além de uma ida à pedicure antes de se dirigir a seu apartamento, recomendo aos futuros visitantes atenção esmerada com as palavras. Como um artesão da escrita, ele monitora cada uma emitida na sua presença e sua reticência em busca do nirvana semântico pode abrir um intervalo de 10 segundos entre um sujeito e um predicado. Ao lembrar a Franzen que já nos encontramos outro dia, brevemente, ele enfatiza: “Sim, brevemente”. Ao pedir para que diga uma segunda vez para a gravação a resposta sobre os muitos significados da “liberdade” do título de seu romance, sou comunicada de que essa foi a minha pergunta “menos favorita”. Mas eu logo me lembraria que estava diante de um cavalheiro do Meio-Oeste que detesta ser indagado sobre o que isso quer dizer. Numa gentileza típica de Midwesterners, ele oferece a explicação. Mais do que isso, não deixa uma pergunta da entrevista a seguir sem resposta. Tijolos, afinal, servem para construir alguma coisa.



O seu romance, apesar de seguir a história de uma família por 30 anos, é rico em fatos da última década. Houve um momento específico em que a política americana foi decisiva para dar a partida da trama?



Sim, houve vários momentos. Provavelmente a decisão de invadir o Iraque, acima de tudo. O problema é que, toda vez que eu queria decolar, com um tema político, eu ficava paralisado pela minha própria raiva, pelo meu próprio partidarismo, como um democrata de esquerda. Não conseguia me separar das minhas convicções e a minha angústia como um americano por causa do que o governo estava fazendo. Então, não me parece acidental o fato de ter começado a escrever uma semana antes de Obama ser eleito, quando ficou claro que ele ia ganhar. Algo me fez relaxar e consegui me despreocupar de questões políticas e retornar ao trabalho de criar histórias complicadas e ambíguas. Até aquele momento, o que eu já tinha como trama era apenas a família da protagonista Patty e sua má experiência com o liberalismo americano. Eu tentava, há tempos, distribuir igualmente as ofensas à esquerda e à direita, mas só quando percebi que Bush ia embora me pareceu OK passar um ano escrevendo um romance.



O que é o seu Meio-Oeste, um elemento psicológico tão importante da sua ficção?



Eu acho que o Meio-Oeste não é um lugar, é uma síntese. As pessoas se identificam como midwesterners e têm algo em mente quando dizem isso. Se você mora na Califórnia ou em Nova York, também quer dizer algo quando se refere ao Meio-Oeste. Mas não tenho certeza se há um conjunto de características do Midwesterner que não são compartilhadas em outros locais do país. Pode ser um termo sem significado.



Mas por que você diz que por um lado é um “bom rapaz do Meio-Oeste”?



É quase uma redundância; se refere à ideia de que as pessoas nas costas Leste e Oeste são agressivas. O estereótipo do Midwesterner é extremamente bonzinho.



E não gosta de pretensão…



Isso mesmo, é despretensioso. Acho que podemos argumentar que F. Scott Fitzgerald e Sinclair Lewis inventaram o Meio-Oeste e o fizeram como pessoas que deixaram o lugar. Então, o Meio-Oeste parece se revelar só quando você vai embora. Hemingway foi embora, Kurt Vonnegut também. E o David Foster Wallace – todo mundo vai embora. E aí você percebe que vê as costas com um olhar diferente de quem cresceu lá e, desta posição, começa a argumentar que há algo sobre o Meio-Oeste.



Por que você gosta de usar múltiplos pontos de vista na sua narração?



Isso é muito natural para mim. Eu cresci numa casa com quatro vozes muito fortes. E cada uma muito diferente e todas em conflito entre elas. E todos falavam comigo, me incluíam na sua versão da história da família. Mas as versões estavam em grande conflito. Então acho que cresci, como o caçula, aprendendo a falar quatro línguas diferentes, olhando o mundo com quatro perspectivas diferentes. Seria difícil para mim um romance numa só voz narrativa.



Você comentou que cresceu como uma criança num mundo de adultos. Hoje, a cultura corteja segmentos jovens como se ser criança ou adolescente fossem um objetivo e não uma etapa do crescimento. Em Liberdade, nós vemos adultos se comportando como crianças e seus filhos tendo que amadurecer para compensar. Foi a sua experiência pessoal?



Eu pude observar isso. Há várias coisas. Os anos 60 inventaram a juventude e fizeram dela um território de acontecimentos na cultura. Foi algo liderado pela indústria da publicidade e muito útil para uma sociedade de consumo que gosta de transformar as pessoas em adolescentes eternos. Então, você começa por antecipar a adolescência – crianças de 8 anos já têm que se preocupar se usam roupas cool, com os aparelhos que têm que comprar e, no outro extremo, não termina aos 20 anos, vai continuando até os 65! Foi um fenômeno inventado pelos baby boomers. Há essa anulação da diferença de idade que, quando eu crescia, ainda era crucial. Eu não gostava especialmente de ser criança, queria me tornar adulto logo, mas desfrutava dos privilégios de ser criança. E me sentia grato porque meus pais faziam seu papel de adultos. Essa falta de distinção entre o que é ser adulto e ser criança na cultura me assusta.



A personagem Patty, a certa altura, critica a geração do filho, diz como deve ser difícil, por um momento, ter que sair do seu próprio mundo de fones de ouvido e gadgets pessoais. Muitos perguntam se o maciço assalto aos sentidos vai afetar o hábito da leitura solitária, que exige do leitor se desligar da internet e dos aparelhos.



Acho que ainda há muitos leitores. A minha visão é quase oposta. Muitas pessoas estão oprimidas por este mundo virtual e pelo bombardeio de comunicações. Nem todos, é claro. À medida que aumenta a diferença entre ler um livro e as outras experiências de hoje, o livro emerge como uma alternativa real e deve ser mais atraente por causa disso. É um refúgio. Num bom romance, você consegue se reconhecer e pensar: “Eu poderia estar nessa situação”. Não é uma confusão de identidade, mas uma alternativa. Escrever e ler um romance tem muito a ver com uma perda voluntária do eu – o oposto de se sentir no centro do mundo virtual.



Quando o personagem músico Richard Katz dá uma entrevista sarcástica para o estudante adolescente sobre a canção avulsa em mp3, isso reflete o que você vê acontecendo com a música?



Ah, sim. A música está num lugar ruim, acho. O arquivo mp3 transformou completamente o uso cultural da música. E fez dela uma espécie de goma de mascar e também um tipo de droga, muito longe de uma experiência singular e coerente. Quem ouve um álbum completo hoje em dia? E quem grava um bom álbum completo? Poucos.



Mas exatamente porque os músicos não conseguem sobreviver com gravações, eles estão em tours constante – há muito mais música ao vivo.



Eu sei disso. Pode ser uma coisa boa. Mas é como dizer que há mais bares para tomar café. Eu não acho que a música ao vivo seja uma atividade que carregue significância. Você pode desfrutar dela. O que estou dizendo pode ser anátema para um público brasileiro. Porém não há conteúdo. É um prazer, mas, e daí? Quando você vê um músico que um dia respeitou tendo sua obra como trilha de comerciais para produtos deploráveis, você percebe que a música não tem centro moral e não tem mais conteúdo intelectual. É pura diversão.



Quando o jovem personagem Joey enfrenta dificuldades e se vê sozinho, ele pensa que deve satisfações ao seu pai “severo e com princípios”. O que há de especial na necessidade de um filho ser aceito pelo pai – algo que me parece ser um elemento essencial do seu romance?



No meu caso não foi assim, o meu pai me aceitava. Ele era severo, duro, assustador. Minha mãe era bem mais militante na sua desaprovação. Ele era rígido, mas doce. O problema que você cita era mais o caso de um dos meus irmãos. Há um tipo de história que vai sempre me fazer chorar – qualquer história sobre um pai e um filho superando uma separação por desavença.



Por quê?



Bem, não queremos traficar estereótipos entre os sexos….



Fique à vontade, nós brasileiros temos tolerância alta para o politicamente incorreto.



Tradicionalmente, o esforço de construir redes de relacionamento é deixado com as mulheres, e tradicionalmente, os homens vão à luta para se definir por conta própria. Não sei se deve ser ou tem que ser assim, no entanto você olha para as outras espécies e, geralmente, as fêmeas estão organizando o lar e os machos estão por aí lutando uns com os outros. Pode chamar de conflito edipiano, não importa, o filho sempre está lutando por um certo espaço. E, por causa dessa história de conflito entre pais e filhos, eu fico muito emocionado quando eles superam isso.



Você já se referiu aos seus dois primeiros romances, The 27th City e Strong Motion como produtos de um período da sua vida em que queria a todo custo impedir qualquer risco de sentimentalismo na escrita. E que, com a doença e morte do seu pai, ao escrever As Correções, queria experimentar a perda de controle.



Eu ainda me preocupo em evitar o sentimentalismo – que é diferente de sentimento, claro. Sim, havia muita ironia e sátira nos dois primeiros livros. E me remete ao que acabamos de mencionar. Meu pai era esta presença masculina tão contida e inteligente e eu, o menino da família, queria me afirmar intelectualmente através do meu trabalho, ser invulnerável a qualquer ataque emocional. À medida que nos tornamos mais velhos, podemos assumir mais riscos.

Lúcia Guimarães
O Estado de S.Paulo.28/05/11

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