sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Mal passado um mês da tragédia parisiense que mobilizou a consciência e o afeto da quase totalidade do mundo, a imprensa começa a afastar-se do assunto. Isso parece natural uma vez que todo acontecimento jornalístico (a notícia, na verdade) obedece a curvas variáveis de interesse tanto por parte do público leitor quanto do próprio arbítrio editorial. O “natural” deve-se a que “notícia é aquilo que será menos interessante amanhã do que hoje” (André Gide), ou seja, a imprensa vive de fatos datados e com duração variável.
É arriscado tentar fugir à marcação temporal por meio do aprofundamento reflexivo. O risco é incorrer na pecha da banalidade e da desinformação, como atesta a fala do personagem Martin Chuzzlewitt no longo ataque de Charles Dickens (em 1844) à imprensa norte-americana:
“Atualmente do que precisamos são de fatos; nunca ensineis a estas moças e a estes rapazes senão fatos. Na vida, só temos necessidade de fatos. Não implanteis outra coisa em seu espírito: arrancai deles tudo quanto não se parecer com fatos; só por meio de fatos podeis formar a inteligência do animal racional”.
Mas esse risco não é apenas jornalístico, tanto que, na elaboração de sistemas de pensamento acadêmicos, pode-se opor a força dos fatos às generalidades. Assim acontece com a filosofia de Michel Foucault, tal como descrita pelo historiador Paul Veyne, que o conheceu de perto. Afirmando que Foucault não acreditava em nenhuma idéia geral, mas na verdade dos fatos, Veyne sublinha:
“O que nos faz sofrer, o que nos causa indignação, isso existe. Por outro lado, o sentido da história, a vocação da humanidade, o universalismo... Todas as grandes ideias não são realidades. Auschwitz é um fato, assim como a inocência de Dreyfus. Os crimes do stalinismo, o colonialismo, as alas de alta segurança nas prisões, o tratamento infligido aos loucos pelo sistema de asilos são fatos. Foucault não somente crê neles como os combate”. (Folha de S.Paulo, caderno “Mais”, 30/3/2008).
Como bem se sabe, o jornalismo incorpora o senso comum sobre os fatos, mas principalmente um senso moldado pelo positivismo, doutrina cujo auge coincide com a ascensão prestigiosa da imprensa burguesa. A elaboração histórica da ideia de “objetividade jornalística” – segundo a qual o jornalismo informativo deveria funcionar como uma espécie de espelho do mundo real – é também uma doutrina de caráter profissional-industrial.
(Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro)
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Carlos Ruggi

A censura aos professores da educação básica


29/01/2015



Há um mantra no debate educacional do Brasil de que toda a sociedade deve participar dessa discussão. Clamam por todo tipo de opinião para superarmos os problemas da educação. Vou defender neste texto que esse tipo de ideia é o grande obstáculo para as soluções necessárias, pois acaba por eliminar do debate o principal ator: o professor da educação básica.

A variedade de instituições, órgãos e profissionais que participam do debate para a melhoria da educação brasileira é única no mundo. Participam o Banco Mundial, Unicef, ONGs, empresas, empreendedores, pastores, padres, socialites, banqueiros, professores universitários etc. Muita gente querendo dar seu pitaco. É neste “grande debate” que o professor secundarista perde a vez, já que ele é muito desvalorizado por toda a sociedade, não só pelos políticos. Essa desvalorização pode ser vista na ausência dos professores secundaristas na mídia. Peço ao leitor para tentar lembrar ou pesquisar algum colunista de jornal ou revista de grande circulação que seja professor de escola pública. Eu não conheço. Alguém lembra se algum professor da educação básica já ocupou o centro do programa Roda Viva, da TV Cultura? Nunca vi sequer participarem da bancada. Em reportagens sobre educação, dificilmente um professor da educação básica é ouvido para dar opinião e apresentar propostas. Na imensa maioria das vezes, só é ouvido para relatar violências e coisas do tipo. A apresentação de propostas só é concedida para membros de ONGs, celebridades, professores universitários, políticos, psicólogos e os ditos especialistas.

O resultado dessa espécie de censura é o desconhecimento das demandas necessárias para resolver os problemas da educação básica. Isso porque quem dita as ações educacionais não sabe nada ou quase nada do que acontece na escola e em suas salas de aula. Desconhecem, por exemplo, que a escola pública brasileira é administrada para diminuir ao máximo o trabalho de pedagogos, diretores e funcionários de secretarias de educação. E a melhor maneira de se fazer isso é jogar todas as responsabilidades para o professor. Se o aluno tira nota ruim, é mais fácil culpar o professor do que conversar com o aluno e seus pais. Imagine se os pedagogos tivessem de conversar com mais de 50% dos alunos e pais sobre notas ruins. Haja reuniões! É bem mais fácil o professor dar provas mais fáceis. Se o aluno comete indisciplinas em sala de aula, é mais fácil pressionar o professor para suportar o comportamento do aluno do que tentar discipliná-lo. Pois o diretor vai ter de marcar reunião com os pais do aluno, que podem ser muito desrespeitosos. Isso dá trabalho. Como dá trabalho também suspender alunos com indisciplinas graves. Dizem que a secretaria pode “pegar no pé”. Em todas essas situações, o ensino é deixado de lado para dar lugar a outros interesses. Aí, podem contratar os melhores professores do mundo que não darão jeito. Podem comprar tablets, diminuir as disciplinas, implantar métodos de ensino revolucionários que não vai adiantar.

É preciso que o professor secundarista seja o condutor maior da educação básica brasileira. O autor da aula é o professor. Ele é o quem mais tem contato com o aluno no tratamento do conteúdo apresentado. Assim, é ele que tem mais propriedade para apontar as dificuldades de aprendizado dos alunos e propor as medidas adequadas para garantir o aprendizado do conteúdo. Mas o que se vê são outros profissionais e cidadãos ditando as ações educacionais. E, na maior parte das vezes, falam sobre o que não sabem (conteúdo) e sobre o que não veem (atividades dos alunos).


Antes de mais nada, é preciso permitir que o professor exija que o estudante estude. Se o professor não pode cobrar leitura, exercícios e disciplina, não consegue expor conteúdos e orientar os alunos. Nessa situação, o professor não exerce sua função e o estudante não exerce a dele. Vejam que nem sua função básica a educação brasileira consegue executar. A sociedade quer colocar banco de couro em carro sem chassi. E termina por conseguir duas coisas: permitir todo tipo de maus-tratos para com o professor dentro da escola, com professores sendo sistematicamente desrespeitados e agredidos verbalmente pelos alunos, como também cotidianamente assediados moralmente por pedagogos e diretores; e deformar o intelecto e a moral dos alunos. Os alunos saem da escola analfabetos funcionais e marginais das regras e leis da sociedade.

THIAGO MELO, PROFESSOR DE FILOSOFIA DA REDE ESTADUAL DE ENSINO

Arbitrariedades e aparelhamento político nas escolas públicas


Publicado em 20/11/2014 | THIAGO MELO
  
A administração pública brasileira possui, na prática, duas diretrizes fundamentais: facilitar a vida de quem manda e reeleger quem está no poder. Essas duas diretrizes moldam uma administração que coloca os interesses particulares acima do bem comum. É notório que as ações políticas são feitas com vistas aos ganhos eleitorais que elas podem trazer, e não ao interesse público. O que não é muito notado é que as ações na administração pública são realizadas com vistas a facilitar o trabalho daqueles que mandam, e não com interesse institucional. A prorrogação súbita do mandato de diretores das escolas estaduais paranaenses e a proposta de acabar com o limite de reeleições escolares parecem ilustrar bem o funcionamento da administração pública brasileira.

No último dia 4 de novembro, a Assembleia Legislativa do Paraná prorrogou em um ano o mandato dos atuais diretores das escolas estaduais. Essa ação possui duas arbitrariedades. Em primeiro lugar, não foi considerada a posição da categoria (professores, pedagogos, funcionários e diretores), representada pelo sindicato dos professores. Foi levado em conta o pedido dos diretores que querem se perpetuar no poder das escolas. O interesse de uns foi colocado acima do interesse da categoria como um todo. Em segundo lugar, não foi respeitada qualquer carência para a vigência da nova regra. A prorrogação ocorreu com o processo eleitoral das escolas em andamento e de forma imediata, beneficiando apenas uma pequena parte de pessoas. Essas duas situações ilustram bem o problema das arbitrariedades: os interesses particulares são impostos em detrimento dos interesses coletivos. E é justamente para evitar arbitrariedades que existe carência para a vigência de novas leis e regras, e existe a democracia.

Vale lembrar que os deputados adiaram a votação sobre o fim da reeleição da Mesa Executiva da Assembleia Legislativa. Cabe a pergunta: por que não adiaram também a votação sobre a prorrogação dos diretores escolares, já que o processo eleitoral das escolas estava em andamento? Além do mais, caso fosse votado o fim da reeleição da Mesa Executiva, a nova regra só iria valer a partir da nova gestão. Outra pergunta: por que neste caso vai ser respeitada a carência, mas no caso dos diretores escolares a implementação foi imediata?

O deputado estadual Luiz Romanelli disse, em artigo publicado na Gazeta do Povo, que está propondo acabar com o limite de reeleições para diretor escolar e com a atual fórmula de apuração de votos. O deputado justifica as duas propostas alegando que o aspecto fundamental da democracia é o voto. Para ele, o voto de todos tem de ter o mesmo peso e o limite de reeleição não pode impedir o voto a ninguém.

Sobre a mudança na fórmula de apuração de votos, é muito questionável que pessoas em estágio inicial de formação intelectual e que não vão passar muito tempo em uma escola possam decidir os rumos da instituição. Por serem imensa maioria na escola, os alunos sempre vão ser determinantes na votação para diretor. Assim, é muito provável que sejam eleitos os funcionários que coloquem a vontade dos alunos acima dos interesses institucionais da escola, como o ensino. O inspetor que sempre deixa o aluno atrasado entrar, o professor que passa todos de ano sem cobrar o conteúdo necessário, o diretor que não pune a indisciplina do aluno e o pedagogo que sempre defende o aluno que não se esforça terão grandes chances de se eleger. Já aqueles funcionários que exercem sua profissão adequadamente terão pouquíssimas chances. Esse quadro não me parece o da escola de qualidade e democrática de que precisamos.

Quanto ao fim do limite de reeleição para diretores, basta olhar para as escolas onde os diretores estão há mais de dez anos no cargo. Nestas escolas, a maior parte das ações é feita para o bem do diretor. O nome que se dá para isso é aparelhamento político. O diretor trabalha para manter as pessoas com quem possui afinidades eletivas, e não os profissionais mais capacitados. As decisões pedagógicas são tomadas a fim de poupar trabalho para o diretor. Uma delas é a de procurar fazer o professor ceder em alguma medida educacional, já que é mais fácil convencer uma pessoa adulta e educada do que quatro ou cinco alunos indisciplinados. O simples uso de um data show passa a ser de uso restrito da direção, que não quer que ele seja desgastado em sala de aula. Em suma, com um diretor há muito tempo no poder a escola passa a funcionar em função dos interesses desse diretor, que com muita facilidade, em virtude desse aparelhamento, conseguirá ser reeleito. Nesta circunstância, também fica fácil os governos aparelharem politicamente as escolas.

Como podemos ver, esse “impulso democrático” nas escolas públicas pretendido pelos governantes não pode ser mais perigoso. É perigoso porque desvia ainda mais a escola de sua função principal, que é o ensino, perdendo a qualidade. E é perigoso também porque permite que algumas pessoas se considerem infalíveis, ficando acima do bem e do mal. Até onde sei, a democracia serve para inibir tal situação.

Thiago Melo é professor de Filosofia na rede estadual de ensino.

Gazeta do Povo