Mal passado um mês da tragédia parisiense que mobilizou a
consciência e o afeto da quase totalidade do mundo, a imprensa começa a
afastar-se do assunto. Isso parece natural uma vez que todo acontecimento
jornalístico (a notícia, na verdade) obedece a curvas variáveis de interesse
tanto por parte do público leitor quanto do próprio arbítrio editorial. O
“natural” deve-se a que “notícia é aquilo que será menos interessante amanhã do
que hoje” (André Gide), ou seja, a imprensa vive de fatos datados e com duração
variável.
É arriscado tentar fugir à marcação temporal por meio do
aprofundamento reflexivo. O risco é incorrer na pecha da banalidade e da
desinformação, como atesta a fala do personagem Martin Chuzzlewitt no longo
ataque de Charles Dickens (em 1844) à imprensa norte-americana:
“Atualmente do que precisamos são de fatos; nunca ensineis a
estas moças e a estes rapazes senão fatos. Na vida, só temos necessidade de
fatos. Não implanteis outra coisa em seu espírito: arrancai deles tudo quanto
não se parecer com fatos; só por meio de fatos podeis formar a inteligência do
animal racional”.
Mas esse risco não é apenas jornalístico, tanto que, na
elaboração de sistemas de pensamento acadêmicos, pode-se opor a força dos fatos
às generalidades. Assim acontece com a filosofia de Michel Foucault, tal como
descrita pelo historiador Paul Veyne, que o conheceu de perto. Afirmando que
Foucault não acreditava em nenhuma idéia geral, mas na verdade dos fatos, Veyne
sublinha:
“O que nos faz sofrer, o que nos causa indignação, isso
existe. Por outro lado, o sentido da história, a vocação da humanidade, o
universalismo... Todas as grandes ideias não são realidades. Auschwitz é um
fato, assim como a inocência de Dreyfus. Os crimes do stalinismo, o
colonialismo, as alas de alta segurança nas prisões, o tratamento infligido aos
loucos pelo sistema de asilos são fatos. Foucault não somente crê neles como os
combate”. (Folha de S.Paulo, caderno “Mais”, 30/3/2008).
Como bem se sabe, o jornalismo incorpora o senso comum sobre
os fatos, mas principalmente um senso moldado pelo positivismo, doutrina cujo
auge coincide com a ascensão prestigiosa da imprensa burguesa. A elaboração
histórica da ideia de “objetividade jornalística” – segundo a qual o jornalismo
informativo deveria funcionar como uma espécie de espelho do mundo real – é
também uma doutrina de caráter profissional-industrial.
(Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular
(aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro)
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Carlos Ruggi
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