segunda-feira, 25 de abril de 2011

A literatura faz os homens mais sensíveis e estimula


Sua imaginação. E homens com sensibilidade e imaginação são

Difíceis de se explorar, de se reprimir. Essa é a grande função da literatura:

Criar gente inconformada com a realidade.

Mário Vargas Llosa





Concepção de literatura segundo Antônio Gómez Mariana:

“Literatura é uma confrontação dialética de discursos, quando esses são ironizados, parodiados e, inclusive, subvertidos, sendo que tais operações são as mais importantes que a literatura vem realizando há muito tempo, e sob diferentes formas. Todo esse trabalho ocorre sobre os usos da linguagem que sempre são regulados socialmente. Rompendo as fronteiras das formulações discursivas que se querem pertencentes com exclusividade aos diferentes campos do saber, a literatura examina os discursos produzidos nestes e por estes campos e, ao contrasta-los, oferece uma visão plural da sociedade que os gera e os sustenta”.

Propomos a leitura não como hábito nem gosto, mas sim, como uma prática sujeita a variantes sociais, familiares, escolares e pessoais. O que é ler em um país onde a literatura sempre foi um tema para uma minoria? Os jovens crescem cercados por valores pragmáticos. Literatura é rede de linguagens, subverte discursos, não embala o leitor. Contestando o seu cotidiano, abala o centralismo lingüístico, rompe fronteiras de discursos. O estatuto artístico depende de flutuações discursivas. O texto dialógico se abre para contradições sociais, instigando-nos à convivência com diferenças. Ler é lidar com outro tempo, superar a sofreguidão imediatista: exige uma lenta maturação de signos, concatenação de camadas de referências. Literatura é montagem singular e coloca em cheque a ficção do eu. Sob o fascismo do consumo, o neocapitalismo esvazia o sentido da vida. Este permanece na mistificação: escrever é obra de gênios. O trabalho do escritor desaparece, ou seja, a subjetividade do escrito e até mesmo a nossa, não é pura, pois ela está sempre interligada com o outro, para o outro e pelo outro. Precisamos re-humanizar o sentido de ler. O leitor pode descobrir no ato da leitura um modo de recriar-se.

Trabalhar com a literatura é fazer com que as pessoas criem vínculos com textos literários (narrativas curtas, poemas, crônicas, peças de teatro, músicas, etc.), construindo novos padrões e destruindo os velhos; sempre respeitando o ritmo, a sua prática e os interesses de cada pessoa. O objetivo da literatura não é confirmar o que o leitor já sabe e nem dignificar o seu cotidiano, mas sim, contesta-los. A literatura quer provocar estranheza, e não, identificação.
O não lugar é terreno fértil para sonhar com um novo lugar


Tomo emprestado de Boaventura Santos[15] o conceito de “fronteira”, adaptando-o livremente à nossa reflexão, como outro campo de riscos e potencialidades. O excluído é aquele que habita o espaço indefinido da fronteira. O termo “fronteira”, neste caso, é entendido não tanto em termos geográficos, mas em termos simbólicos, culturais e até psíquicos. Uma espécie de não lugar, onde mora um não cidadão, marcado pela carência daquilo que é básico à dignidade humana. Por isso mesmo, vê sua identidade ameaçada, questionada, fragmentada. No extremo, até a esperança e a fé se vêem abaladas. Bastaria ter presente, aqui, os rostos dos sem terra, dos desempregados, dos moradores de rua, dos povos indígenas, dos negros e remanescentes de quilombos, dos jovens aliciados pela tráfico e pelas drogas, das mulheres prostituídas ou vítimas da violência dentro de suas próprias famílias, das crianças abandonadas, dos trabalhadores escravos, das vítimas do tráfico de seres humanos, dos migrantes e imigrantes, entre tantos outros.

A partir desse não lugar, o excluído é levado a interrogar a Deus e a interrogar o próprio destino. Dúvida, medo e insegurança passam a habitar o coração e a alma. O perigo da fome, da solidão e do desespero ronda a porta. De acordo com Boaventura Santos, é aí que o pobre vai lançar mão, simultaneamente, de sua herança cultural e da invenção de novas formas de sociabilidade. Esse espaço ambíguo da fronteira – esse não lugar – é ao mesmo tempo cheio de riscos e de novas potencialidades. Uns e outras se misturam, se confundem e se alternam. Se, por um lado, a fronteira revela o excluído como vítima da ordem mundial vigente, por outro, também o revela como protagonista de um novo tempo. A experiência de passar pela fronteira abre perspectivas para buscar uma nova cidadania. Ou seja, o não lugar torna-se o melhor lugar para refletir sobre um novo lugar.

Potencialmente, o terreno ambíguo da fronteira torna-se o lugar ideal e privilegiado para criar as raízes de uma nova sociedade que, em termos mais amplos, é também uma nova noção de pátria, um terreno fértil para cultivar o conceito de cidadania universal e sem fronteiras. A partir da experiência dolorosa de estar fora dos muros que dão proteção aos “incluídos”, engendra-se o anseio por uma casa aberta a todos e a todas, indistintamente. Numa palavra, a multidão de excluídos hoje habita a fronteira de dois mundos ou duas civilizações: de um lado, uma ordem mundial simultaneamente concentradora e excludente, de outro, o sonho de um outro mundo possível. O próprio fato de ser “excluído” é, ao mesmo tempo, denúncia e anúncio, num tempo marcado por profundas assimetrias sócio-econômicas. Denúncia da falta de condições reais para sobreviver em seu próprio meio e anúncio de que mudanças substanciais se fazem necessárias e urgentes.

Os pobres, ao experimentarem no corpo e na alma profundas carências, são portadores dessa nova utopia mundial. Tornam-se, a um só tempo, sinais das contradições da globalização neoliberal e porta-vozes de uma nova ordem mundial. O solo escorregadio da fronteira gera uma atitude ambígua marcada pela experiência de se encontrar fora de casa e da pátria. Nesse não lugar, o não cidadão se depara frente a uma encruzilhada: o que fazer? Entregar-se ao desespero, apelar para a caridade dos vizinhos ou lutar para abrir novos caminhos?

O não lugar, embora indefinido e cheio de riscos, torna-se então fecundo de potencialidades, com vistas a uma nova reflexão sobre a própria existência, sobre a fé em Deus e sobre a prática solidária para com os irmãos e irmãs. Convém não esquecer, aliás, que o próprio Jesus nasceu e morreu fora dos muros da cidade, respectivamente numa gruta e no calvário das execuções. De um lado, diz o relato evangélico, Maria “deu à luz o seu filho primogênito e o deitou numa manjedoura, pois não havia lugar para eles na pousada” (Lc 2,5-7). De outro, ao ser crucificado, o levam para “fora das portas da cidade (Hbr 13,11-12). A família de Nazaré passou, diversas vezes, pela experiência da migração e da exclusão social. Na trajetória que vai do berço-manjedoura à cruz, e desta à ressurreição, a mensagem da Boa Nova do Evangelho mergulha suas raízes no terreno simultaneamente movediço e fértil do não lugar. Numa palavra, até mesmo do ponto de vista teológico, a fronteira é um lugar fecundo para deitar os alicerces do Reino de Deus.

Conclusão

Utilizamos mais uma vez as palavras de Lefebvre para colocar um ponto final em nossa reflexão: “As questões mistas, os acontecimentos marginais, os fatos em contradição aparente ou real, os conceitos laterais, são os mais reveladores e os mais fecundos. As tensões são fecundas, estéreis são as sujeições”[16]. De fato, uma sociedade fechada, cristalizada, petrificada torna-se impermeável à transformação social. A mudança somente será fértil quando se insinua através das brechas e das fissuras das estruturas de auto-suficiência humana, sejam sócio-econômicas, sejam humanas. A situação e o grito dos excluídos, por si só, expõem as incongruências e as tensões de uma determinada ordem social, ao mesmo tempo que cobra transformações profundas. O terreno da exclusão social constitui um campo minado, em que as correntes subterrâneas pressionam por explodir e vir à superfície. Na encruzilhada entre os riscos e as potencialidades da práxis humana, forjam-se caminhos novos em direção a um outro mundo possível.

O não lugar como novo lugar

Partimos da concepção de uma sociedade marcada pela hegemonia mundial do mercado financeiro, pela economia mundializada[1] de corte neoliberal, por um novo tipo de imperialismo comandado pelos países centrais, com destaque para os Estados Unidos, e por uma enorme malha de redes que unem praticamente os países de todo planeta, em termos políticos, econômicos, culturais e sociais.[2] Nesse cenário extremamente resumido, acentua-se a concentração da riqueza e da renda, por um lado, e, por outro, cresce o número daqueles que se vêem obrigados a submeterem-se às condições mais degradantes de trabalho e de vida, a troco de uma sobrevivência cada vez mais precária. Enquanto o capital flui e reflui desconhecendo qualquer tipo de fronteira e de obstáculo, os trabalhadores e trabalhadoras encontram enormes dificuldades para vencer as os muros, visíveis e invisíveis, que separam os de fora e os de dentro, os cidadãos e os não cidadãos, os incluídos e os excluídos[3].

Mudanças de nosso tempo

a). As últimas décadas do século XX representam um período de transição em que confluem, entre outras, três mudanças abrangentes e profundas. A primeira delas, de caráter econômico, político e social, pode ser entendida como a crise do neoliberalismo. De fato, após o período dos “anos de ouro” da economia capitalista, que se estende do imediato pós-guerra até o início dos anos 70, instala-se em nível mundial uma crise profunda e prolongada. Dois fatores serão decisivos para o desencadeamento da crise: o aumento dos preços do petróleo e a desvinculação do dólar quanto ao padrão ouro. Em vista disso, no último quartel do século, os grandes conglomerados empresarias, por um lado, e os governos dos países desenvolvidos, por outro, buscaram diferentes saídas a essa crise. O “consenso de Washington” resume bem as alternativas apontadas pelas elites mundiais. Entre elas, podemos destacar rapidamente quatro respostas.

A primeira é a ampliação do mercado a qualquer custo, num processo que se convencionou chamar de globalização. Este processo se caracteriza por dois aspectos simultâneos: um extensivo, no sentido de incorporar novas regiões e/ou países à economia de mercado, como por exemplo os “continentes” chinês e russo; o outro intensivo, em que o marketing apelativo tem papel fundamental, na medida em que procura ampliar o volume de desejos e necessidades nos consumidores tradicionais. Trata-se de uma verdadeira guerra por novos mercados, onde se encaixa a disputa e a defesa dos grandes blocos continentais: asiático, europeu, norte-americano, bem como a tentativa de criação da ALCA. Está em jogo também a necessidade de encontrar matérias-primas mais fáceis e mais baratas

A segunda resposta vem acompanhada de uma segunda guerra, desta vez contra o trabalho e o trabalhador. Termos como flexibilização, terceirização e precarização das relações de trabalho passam a ter grande significação dentro deste quadro. A tendência geral é enxugar os gastos da produção, sacrificando especialmente a fatia representada pelos custos do trabalho. O resultado disso é o aumento do desemprego, subemprego e do trabalho degradante; o vaivém cada vez mais intenso, mais complexo e mais diversificado dos deslocamentos humanos de massa; e a exclusão social, com o surgimento de novos rostos na imensa multidão dos “sem”. Na ponta da linha, vemos esboroarem-se e derreterem-se os ganhos trabalhistas acumulados durante duzentos anos de luta sindical. Por outro lado, no mundo inteiro, diminui e definha a capacidade de organização e mobilização da classe trabalhadora.

A terceira resposta tem a ver com o processo de privatizações que marcou, por exemplo, os oito anos de governo de Fernando Henrique Cardoso. As empresas mais rentáveis passam para a iniciativa privada, como foi o caso da Vale do Rio Doce, da Usiminas e da Telebrás. Também passam para a iniciativa privada alguns serviços públicos, o que significa, no limite, re-converter os direitos em mercadorias[4]. Daí o preço elevado e a precarização dos transportes públicos, da malha viária, da saúde, etc. O Estado de bem-estar social da era keynesiana se retira ou se contrai, deixando os trabalhadores, frágeis e desamparados, à mercê de um capitalismo cada vez mais competitivo.

A última resposta à crise é representada pela hegemonia crescente do mercado financeiro, em detrimento da produção de bens. O planeta se converte num imenso cassino mundial, onde o fluxo e refluxo de capitais torna-se terreno fértil para a prática da especulação por parte dos mega-investidores internacionais. O mecanismo da dívida externa, com o pagamento de juros e serviços, alimenta essa prática, em que os governos dos países endividados são como reféns a serviço da transferência de renda: recolhem o dinheiro dos contribuintes através de pesados impostos e o repassam às contas bancárias dos investidores. Não é à toa que os bancos foram os que mais lucraram nas últimas décadas e que os indicadores financeiros registram taxas altamente positivas.

b). A segunda grande mudança que converge para a transição do final do século XX e início do século XXI tem um caráter filosófico-cultural. Um bom número de estudiosos referem-se a ela como a crise do paradigma da modernidade[5]. A civilização moderna, em que “vivemos em tempo de gestação e transição para uma nova época”[6], para usar a expressão cunhada por Hegel, consolidou uma espécie de credo baseado em cinco palavras-conceito fundamentais: razão, ciência, tecnologia, progresso e democracia. A crise desse paradigma mergulha suas raízes no final do século XIX, aprofundando-se no decorrer do século XX. A polêmica entre modernidade tardia e pós-modernidade[7] tem aí um solo ao mesmo tempo escorregadio e fecundo. Durante todo o século XX, o retorno da barbárie abriu fissuras irreversíveis no credo da modernidade.

O predomínio da razão conduziu a um desenvolvimento irracional, seja do ponto de vista sócio-econômico, seja do ponto de vista ecológico e cultural; a ciência e a tecnologia, salvo os avanços nas áreas da medicina, dos transportes e das comunicações, colocaram-se sobretudo a serviço da indústria bélica; o progresso econômico e tecnológico caminha em franco descompasso com uma justa distribuição de seus benefícios; a democracia, por fim, hoje pouco mais é do que o suporte institucional, jurídico-formal, da economia de mercado. No geral, aprofunda-se a crítica e o questionamento profundo aos “valores” da cultura moderna, bem como a desconstrução de seu paradigma, isto é, do conjunto de leis, regras e instituições que lhe davam sustentação.

Em termos mais amplos, as certezas foram substituídas pelas dúvidas e as verdades por novas interrogações. O chão parece fugir debaixo de nossos pés. Poderíamos dizer com Marx e Engels que “tudo o que é sólido se desmancha no ar”[8]. A crise se instala justamente quando as perguntas são maiores que nossa capacidade de encontrar respostas. Essa impotência explica, quem sabe, o discurso do sagrado tão presente na cultura “pós-moderna”. Os deuses retornam com a força de água represada, a mesma força com que foram banidos no decorrer da modernidade.

c). A terceira grande mudança da virada do final do século XX é representada por uma urbanização acelerada e caótica, especialmente nos países do Terceiro Mundo. Em grande parte destes países, com efeito, um terço da população ocupa hoje a grande área das respectivas capitais. É o caso do México, da Argentina, da Colômbia, do Peru, do Chile, da Guatemala, entre outros. No Brasil, por exemplo, de acordo com o censo de 2001, do IBGE, mais de 81% da população reside na zona urbana. Nas últimas três décadas do século XX, ao redor de 40 milhões de brasileiros trocaram o campo pela cidade. Nos continentes da Ásia e da América Latina, multiplicam-se como cogumelos cidades com mais de um milhão de habitantes. Por outro lado, megalópolis como Ciudad de Mexico, São Paulo, Buenos Aires, Calcutá, Bombain, Pequim, Xangai, Bancgock – com mais de 10 milhões de pessoas – também crescem de forma desordenada.

A expressão “universo urbano” designa, aqui, não tanto uma determinada área geográfica, circunscrita pelo perímetro urbano, e sim um conceito mais aberto, do ponto de vista simbólico e cultural. Ou seja, o universo urbano não coincide com os limites da cidade. Ele os inclui, mas os ultrapassa. Entendemos por universo urbano, na verdade, uma mentalidade, um modo de ser, uma nova linguagem, uma nova cultura – certamente a cultura do século XXI. Cultura que, ao contrário do que ocorre no universo rural, não mais se rege pelo ciclo da natureza, do plantio e da colheita, das estações do ano, mas pelo ritmo da máquina e do relógio. Não raro os valores e contra-valores do universo urbano exercem maior fascínio e sedução no campo do que na cidade, particularmente entre os jovens. O modo de ser urbano penetra no campo através do vaivém dos migrantes e através da mídia, de modo especial a televisão. Assim a transição do mundo rural para o mundo urbano é experimentada não apenas pelos milhões que migraram da roça para a cidade, mas também por aqueles que nunca saíram do torrão natal em que nasceram. Por outro lado, na zona urbana, não é difícil encontrar bairros inteiros, espécie de bolsões de pessoas que, embora há tempo na cidade, vivem com a cabeça e o coração no campo.

Essa transição do universo rural para o universo urbano é quase sempre acompanhada de profundas rupturas de ordem social, familiar e pessoal. Aqui, a anomia, a solidão e a desesperança costumam ser irmãs gêmeas que seguem de perto os passos dos migrantes. Laços e redes se rompem e se refazem num clima de trauma que pode chegar ao desespero e à loucura. Abrem-se período de grandes perturbações (sociais, familiares, pessoais), os quais, como toda a crise, carregam fracassos e novas potencialidades. Também neste caso, a exclusão social tende a crescer na proporção do desenraizamento cultural e do processo de inserção em um novo ambiente.

As três transformações descritas acima, no seu conjunto, representam não tanto uma época de mudanças, mas uma mudança de época. No fundo, uma transição de tal magnitude que talvez só possa ser comparável à revolução agrícola e à revolução industrial, originárias, respectivamente, da era da agricultura e da era da máquina. Estas duas revoluções, como o nome indica, modificam de alto a baixo o edifício da sociedade: a base material da produção, distribuição e consumo (economia), a organização e instituições sociais (política) e a ordem dos valores e símbolos (cultura). Ambas dão origem a um modo de vida distinto, a um conjunto de novas relações humanas, a uma nova mentalidade e até a uma nova cultura e civilização. A atual transição tecnológica ou informática, como vem sendo chamada, ou a passagem do mundo moderno para o mundo pós-moderno, como preferem outros, também revoluciona os tempos modernos e abre a possibilidade de uma nova cultura ou civilização. Basta ter em vista, por exemplo, os avanços na biotecnologia, na engenharia genética, na informática e na robótica, no acompanhamento à devastação do planeta, na medicina, comunicações e transportes, e assim por diante.

Desafios, riscos e potencialidades

Sobre o pano de fundo da tríplice transição apontada no item anterior, propomos, desde o ponto de vista dos setores excluídos da sociedade, dez desafios para este Encontro de Articuladores do Grito. Na seqüência, procuramos apontar os riscos e potencialidades de cada um desses desafios, alertando desde já para o fato de que os períodos de crise, embora povoados de ameaça e de instabilidade, costumam ser, no terreno da história, sulcos abertos a novas sementes. Trabalhando com o conceito do “possível” ou “potencial”, Lefebvre já insistia que a realidade se compõe de “uma relação dialética entre o atual e o virtual”[9].

1. A crise é terreno fértil para a abertura de novos caminhos

Toda crise é campo ambíguo: momento difícil e doloroso, por um lado, mas, por outro, solo fértil para a busca de alternativas. O conjunto dos excluídos passa, em geral, por crises sucessivas, seja de ordem sócio-econômica, seja de ordem pessoal ou familiar. O desafio aqui é converter esse campo escorregadio da crise em terreno pronto para novas semeaduras. Desvendar nele novas oportunidades e alternativas. Riscos e potencialidades se escondem no solo movediço de toda crise. Como discernir os riscos de uma crise ampla e profunda, por um lado, e, por outro, identificar as potencialidades que ela contém? É isso, aliás, o que nos ajuda a refletir o lema do Grito dos Excluídos de 2006: na força da indignação, sementes de transformação.

Se, em nível pessoal, quem passa pela crise tende a estar mais aberto às novidades da existência, em nível social e político, as vítimas de uma ordem mundial injusta tendem igualmente a estarem mais permeáveis à necessidade de mudanças profundas na história. A dor e a miséria podem levar ao risco de desespero, sem dúvida, mas é também o adubo potencial da solidariedade. A experiência do abandono e do sofrimento predispõe o coração e a alma para o empenho e a luta pela transformação social, para a construção de uma sociedade onde não haja mais exclusão social.

2. O silêncio é terreno fértil para engendrar novas palavras

Ao longo da história, os excluídos foram sendo aos poucos silenciados. Silenciados não é o mesmo que silenciosos. Neste caso, o silêncio é uma escolha; no outro, uma imposição do opressor. De tanto serem silenciados, muitas vezes os excluídos acabam por tornarem-se silenciosos. Esse silêncio, carregado de medo e vergonha, contém sérios riscos: podem dar origem à impotência, à apatia, ao comodismo e à anulação. Mas o mesmo silêncio esconde também a potencialidade de novas palavras, de uma nova linguagem.

Na trajetória da escravidão negra, no Brasil, por exemplo, quando os opressores calaram a voz dos escravos, estes souberam desenvolver o gesto, a dança, a capoeira, a culinária e a música, formas de linguagem e de comunicação bem mais significativas do que a própria fala. Até mesmo o banzo, que na aparência é visto como um deixar-se morrer no silêncio e na inércia, contém na verdade sementes de resistência frente à condição de escravo ou à morte por overdose de trabalho.

O silêncio é diferente do mutismo. Enquanto este representa uma recusa a toda forma de comunicação, aquele está povoado de símbolos que expressão relações profundas. O desafio neste caso é saber interpretar o silêncio dos excluídos. Saber identificar nele possibilidades de novas formas de comunicação, de palavras escritas com a mímica e com o corpo, de uma linguagem rica, estética e coreográfica. Mas, para isso, é preciso abrir espaço para suas expressões culturais e religiosas.

3. O vazio é terreno fértil para elaborar novos conteúdos.

Aparentemente a vida dos excluídos parece um grande vazio. Vazio das condições básicas para uma vida digna; vazio dos direitos essenciais à dignidade da pessoa humana; vazio de alegria e de sentido. Vazio em que os riscos se multiplicam e ganham as ruas, muitas vezes através de formas de violentas, como o tráfico, o consumo de drogas, o sexo apelativo, etc. A “era do vazio”[10], o império do individualismo e a sociedade atomizada parecem tomar conta de tudo e de todos. Mas é preciso enxergar mais fundo.

Sob a capa desse vazio aparente, podemos vislumbrar enormes potencialidades ocultas. Apesar do desemprego, da falta de moradia, da saúde precária, da falta de escola e de transporte, o dia-a-dia nas periferias, nas favelas e nos cortiços costuma revestir-se de uma energia vigorosa e entusiasta. Nem comparar com vazio das mansões e casas da classe média, as quais, apesar de estarem recheadas de luxo, conforto e ostentação, ou precisamente por isso, em geral amargam um tédio deprimente.

Os setores mais pobres e excluídos da população, em geral, sabem como transfigurar o pranto em riso, a dor em esperança, a tristeza em alegria, a pobreza em festa. Embora seja necessário alertar para o risco constante da alienação, torna-se imprescindível reconhecer essa força vital que se abriga no interior mesmo da miséria. Força que, quando bem orientada, pode renovar os conteúdos e os métodos da organização popular, tornando-a mais rica e plural. A partir dela, como diz a canção popular, é possível “levantar a cabeça, sacudir a poeira e dar a volta por cima”. Nesse solo árido há germes virtuais de luta mobilização.

4. A exclusão é terreno fértil para construir um novo poder

A citação é longa, mas vale a pena começar por ela. Diz Lefebvre que

“pela necessidade e pelo conhecimento da carência, o homem e sua consciência, embora com saudades e lamentações, saem da natureza, da infância, da fantasia mágica. É pela privação que a consciência se descobre lançada na vida e no mundo, obrigada a criar seu mundo numa distância em relação ao ser que lhe é inicialmente dado (natural), e em relação a si mesmo. Vê-se forçada a recriar e superar esta distância. O deslumbramento divino dos olhos que se abrem ao mundo e a maravilha dos primeiros sorrisos não bastam. É preciso ao homem provar a carência de trabalhar e criar”.

“Sem haver provado a necessidade e a carência, sem a privação e o desnudamento vividos ou possíveis de serem vividos, não há emergência do ser-consciência, não há o surgimento da liberdade. O ser permanece prisioneiro de sua pátria natal, a ‘natureza’ e a inconsciência. É na e pela necessidade que a liberdade nasce e encontra ocasião de ser exercida, ao descobrir a brecha que, no real, lhe permite penetrar esta dura realidade e a modificar. É enfim, a partir da necessidade como falta que o homem explora um mundo de possibilidades, cria-as, escolhe entre elas e as realiza. Ele se torna historicidade. Sua consciência não pode se fechar. As consciências individuais se abrem sobre as consciências sociais e, inversamente, a multiplicidade das consciências humanas se abre sobre o mundo”[11].

Sem mais comentários, podemos concluir que a necessidade, por um lado, e a consciência dela, por outro, constituem dois ingredientes básicos para a construção do poder popular. Este, de fato, mergulha suas raízes no conjunto de carências que penalizam o povo e, a partir do estudo de suas causas e implicações, inicia um processo de transformação social em que as relações de poder se invertem.

5. A sede é terreno fértil para cavar novos poços de água viva

Sede neste caso é metáfora de uma carência profunda da condição humana. Nosso coração, na verdade, caminha sempre inquieto, tomado por uma sede que jamais se sacia. De alguma forma somos todos caminhantes que, de cada ponto de chegada, fazem um novo ponto de partida. Os excluídos, entretanto, por fatores óbvios, encontram-se sempre a caminho. Na expressão de Marx, constituem o grande “exército de reserva que não mora, acampa”. Constituem, ainda, “as multidões cansadas e abatidas” de que fala o Evangelho (Mt 9,35-38). Multidões que se deslocam pelos caminhos de acordo com as necessidades de mão-de-obra do capital.

Esses caminhos são feitos de pedras e espinhos, de riscos e potencialidades. Entre os riscos, estão as portas fechadas, os muros e cercas, o preconceito e a discriminação, as leis feitas pelos ricos e para os ricos, o desemprego e subemprego, o trabalho escravo ou degradante, a rua, os lixões, a prostituição, o abandono... Enfim, a exclusão social. É a sede de quem está a caminho! Mas no meio do caminho, é possível abrir poços, onde a água viva nutre novas potencialidades de vida. Nas encruzilhadas dos caminhos, criam-se pontos de encontro, costuram-se redes de solidariedade, articulam-se lutas locais e campanhas globais. E a partir dessas lutas e dessa articulação mais ampla, podemos alimentar a utopia de que outro mundo é possível.

6. As perguntas são terreno fértil para buscar novas respostas.

As crises costumam questionar as certezas, as verdades e os valores, fazendo emergir, por outro lado, novas perguntas e novas inquietações. Perguntas e inquietações que podem abrir fissuras na ordem social perversa e levar a novos horizontes. Porém, o coração e a mente das classes dominantes costumam ser empedernidos e impenetráveis a essas interrogações. Quem nasce em berço de ouro, agarra-se com unhas e dentes ao que tem, ao que acumulou. Rejeita os questionamentos e faz tudo para impedir mudanças.

Somente os despossuídos permanecem abertos a tais perguntas e a suas conseqüências sociais e políticas. Abertos, portanto, à busca de novas respostas, de alternativas à ordem social vigente. Num primeiro momento, as perguntas investigam a realidade com suas contradições e injustiças; depois, à medida que se conhecem as raízes dos problemas sociais, cresce a consciência de que as mudanças são necessárias; por fim, a consciência se transforma em ação social e em prática política.

Este círculo dialético se repete e se amplia, formando uma espiral progressiva de consciência crítica, engajamento e transformação social. Ao lado do risco de perguntas mal formuladas e de diagnósticos equivocados, que podem levar ao fracasso, temos certeza de que uma crítica séria e responsável constitui, por si só, um grande potencial de ação. Um diagnóstico bem feito leva a receitas acertadas. Lembra ainda Lefebvre que “o processo de conhecimento nada tem de atividade abstrata. A teoria jamais se separa da prática, ela lhe é parte integrante”[12].

7. As dúvidas são terreno fértil para fortalecer uma nova fé

Já vimos que os momentos de crise levantam dúvidas. As grandes referências se reduzem a cinzas, as estátuas viram escombros, os projetos transformam-se em ruínas. Tudo em volta fica tomado pelas trevas, não há saídas. O desespero bate à porta e o chão parece fugir debaixo dos pés. As estrelas se apagam no céu e, cá embaixo na estrada, não há mais sinais que indiquem a direção a tomar. O que fazer nesses momentos? Aqui entra a importância da fé. É no terreno incerto da dúvida que a fé nasce, cresce e se torna robusta. Uma vez mais, só os pequenos, os pobres e os indefesos podem entender a profundidade e o alcance desse momento, crítico e desafiador ao mesmo tempo. Os poderosos, ao contrário, confiam apenas no poder de suas forças e de sua riqueza. Tornam-se, em grande parte dos casos, prepotentes e arrogantes. Só uma queda brutal pode acordá-los e sacudi-los desse torpor auto-suficiente.

Já os que sofrem carências, sejam elas quais forem, tendem a estarem mais abertos às mudanças. Não tendo nada a perder, agarram-se à possibilidade de encontrar novas saídas para a própria situação. O risco, neste caso, é depositar todas as esperanças na magia, num salvador da pátria, numa benção milagrosa, na loteria, na água benta, na promessa ao santo e na romaria ao santuário, e assim por diante. Como se a fé representasse a intervenção espetacular do transcendente em nossa vida. Por trás disso, esconde-se uma visão da história fatalista e imutável. Esconde-se também o descrédito contra as possibilidades de transformar as pessoas e as estruturas sociais.

Mas há também imensas potencialidades na fé popular. Há resistência muda, gritos mudos, mas sempre ativa. Há a certeza de que o destino não pertence aos que hoje detêm as rédeas do poder, há a confiança no Deus da história, há a utopia viva de que o amanhã pode ser mudado. Essa fé, simultaneamente simples e profunda, além de nutrir a esperança nas horas difíceis e tormentosas, pode cimentar a consciência crítica, as lutas sociais e a mobilização. Daí a importância de levar em conta as manifestações culturais e religiosas das diferentes regiões e estados do país.

8. A escuridão é terreno fértil para acender novas luzes

A crise muitas vezes cega a vista, entorpece os membros, quebra toda vontade se seguir adiante. Não há luz no fim do túnel, os passos não sabem para onde se dirigir. As turbulências políticas de 2005, de certa forma apagaram os faróis que iluminavam nossos caminhos. Aliás, desde o seu início o governo Lula deixou de lado os princípios que vinham iluminando a trajetória do Partido dos Trabalhadores desde sua origem. Após a crise levantada pelas CPI’s e pelo “mensalão”, as forças sociais que apoiaram o projeto popular concentrado na candidatura Lula se fragmentaram: uns continuam no PT, acreditando na possibilidade de re-fundação do partido; outros, migraram para o P-SOL, na esperança, quem sabe, de construir um novo canal político de participação popular; boa parte declara-se abertamente “sem partido”, acrescentando mais um rosto à multidão dos “sem”; uma grande maioria, entretanto, ainda cultua o mito Lula, de carteirinha pronta para reelegê-lo em 2006.

No decorrer desse governo todos nós, de alguma forma, passamos da perplexidade à decepção e desta à indignação. As luzes se apagaram e nos deixaram na penumbra. Aqui há riscos e há fracassos, mas também há lições e há potencialidades. Os fracassos são evidentes nos resultados, ou na falta de resultados, dos três anos do governo Lula. Os compromissos com o mercado financeiro impediram a implementação de políticas públicas, sendo estas substituídas por políticas compensatórias. Só para dar uma idéia dos lucros dos bancos que atuam no Brasil, “segundo levantamento do Banco Central, com dados de 104 instituições financeiras, em 2005, o setor registrou ganhos de R$ 28,3 bilhões, 36% superiores aos de 2004”[13].

O slogan se inverteu: o medo venceu a esperança. Entretanto, tropeçando na política macro-econômica e na corrupção, o governo Lula acabou prestando um grande serviço ao país. Quebrando a hegemonia de um determinado pensamento de esquerda, fez do Brasil de hoje um imenso laboratório político. Laboratório é oficina de experiências onde se realizam novas experiências. O cenário atual abre a possibilidade para novos experimentos, novas combinações, novas posturas e novas práticas, como também novas formas de “fazer política”. Luzes diversificadas se acendem e brilham com força crescente. A expressão “fazer política”, nesta nova maneira de enxergar, não exige necessariamente um partido político. A política do bem comum, na sua acepção original, pode ser levada adiante no interior dos movimentos, associações, pastorais sociais e ONG’s autônomas e independentes. Os papéis das diversas instâncias da sociedade civil, por um lado, e dos partidos políticos, por outro, tendem agora a ficar mais distintos e mais claros.

A verdade é que

“a última eleição presidencial em nosso país, inflou o balão das expectativas populares. Desencadeou anseios de mudança muito acima da capacidade real de mobilização. Inversamente, a correlação de forças das organizações sociais estava muito aquém dos anseios gerados pela subida de Lula ao Planalto. Resultado: hoje as expectativas retornam ao interior dos movimentos sociais e adquirem seu tamanho real. Desfazem-se ilusões, põem-se os pés no chão. Redescobre-se a consciência de que as mudanças não virão de cima. As expectativas de mudança voltam à lenta e dura tarefa das ruas”[14].

Aprendemos a lição: um partido é importante, sem dívida, mas é apenas um entre tantos instrumentos de luta social e política. Não podemos queimar todas as energias e todas as fichas na organização do partido. Impõe-se a necessidade de construir outras vias alternativas de participação popular. Aprendemos também que as mudanças não virão de cima. Os poderes executivo, judiciário e legislativo, no Brasil, estão histórica e estruturalmente viciados. Fazem tudo para garantir os privilégios da Casa Grande, mas viram as costas para as necessidades da Senzala. Aprendemos, ainda, o que já vinha sendo refletido nos espaços do Grito em anos anteriores, ou seja, que as mudanças estão em nossas mãos. Ou elas ocorrem nas ruas, com a mobilização popular, ou simplesmente não haverá mudança de espécie alguma.

9. O deserto é terreno fértil para desafiar a uma nova vida

Crise é também é deserto. Tudo parece seco e árido. As tempestades de areia – a corrupção política e as dívidas sociais – apagam as pegadas dos pés. Temos que reconstruir veredas novas num terreno incógnito e hostil. O deserto estende a perder de vista e parece não haver um ponto verde de esperança. Será? Também neste caso, o deserto é fértil em riscos e em potencialidades. Do lado dos riscos, a grande mídia insiste em levantar os ventos da tempestade e jogar arei em nossos olhos. Ficamos sem saber ao certo o que é verdade é o que é “intriga da oposição”. Em meio a este vendaval, como discernir?

É aqui que entra o lado das potencialidades. A melhor forma de não errar o caminho é colar os ouvidos nos clamores popular, nas necessidades mais urgentes dos excluídos. Se soubermos permanecer fiéis a esses gritos, nada nem ninguém poderá nos desviar do horizonte, nos cooptar ou nos manipular. Isso ressalta a necessidade de voltar ao trabalho de base, às atividades de “formiguinha”, à criação e/ou fortalecimento de pequenos núcleos de reflexão e ação, desde que esse trabalho local esteja conectado e articulado com as redes nacionais e globais de mobilização.

A Assembléia Popular Mutirão por um Novo Brasil, realizada na capital federal, em outubro de 2005, já nos alertava para a necessidade de avançar da democracia representativa para a democracia direta e participativa. O desafio é abrir novos canais, novos instrumentos e novos mecanismos de controle e fiscalização do poder político e do orçamento da União.

10. O não lugar é terreno fértil para sonhar com um novo lugar

Tomo emprestado de Boaventura Santos[15] o conceito de “fronteira”, adaptando-o livremente à nossa reflexão, como outro campo de riscos e potencialidades. O excluído é aquele que habita o espaço indefinido da fronteira. O termo “fronteira”, neste caso, é entendido não tanto em termos geográficos, mas em termos simbólicos, culturais e até psíquicos. Uma espécie de não lugar, onde mora um não cidadão, marcado pela carência daquilo que é básico à dignidade humana. Por isso mesmo, vê sua identidade ameaçada, questionada, fragmentada. No extremo, até a esperança e a fé se vêem abaladas. Bastaria ter presente, aqui, os rostos dos sem terra, dos desempregados, dos moradores de rua, dos povos indígenas, dos negros e remanescentes de quilombos, dos jovens aliciados pela tráfico e pelas drogas, das mulheres prostituídas ou vítimas da violência dentro de suas próprias famílias, das crianças abandonadas, dos trabalhadores escravos, das vítimas do tráfico de seres humanos, dos migrantes e imigrantes, entre tantos outros.

A partir desse não lugar, o excluído é levado a interrogar a Deus e a interrogar o próprio destino. Dúvida, medo e insegurança passam a habitar o coração e a alma. O perigo da fome, da solidão e do desespero ronda a porta. De acordo com Boaventura Santos, é aí que o pobre vai lançar mão, simultaneamente, de sua herança cultural e da invenção de novas formas de sociabilidade. Esse espaço ambíguo da fronteira – esse não lugar – é ao mesmo tempo cheio de riscos e de novas potencialidades. Uns e outras se misturam, se confundem e se alternam. Se, por um lado, a fronteira revela o excluído como vítima da ordem mundial vigente, por outro, também o revela como protagonista de um novo tempo. A experiência de passar pela fronteira abre perspectivas para buscar uma nova cidadania. Ou seja, o não lugar torna-se o melhor lugar para refletir sobre um novo lugar.

Potencialmente, o terreno ambíguo da fronteira torna-se o lugar ideal e privilegiado para criar as raízes de uma nova sociedade que, em termos mais amplos, é também uma nova noção de pátria, um terreno fértil para cultivar o conceito de cidadania universal e sem fronteiras. A partir da experiência dolorosa de estar fora dos muros que dão proteção aos “incluídos”, engendra-se o anseio por uma casa aberta a todos e a todas, indistintamente. Numa palavra, a multidão de excluídos hoje habita a fronteira de dois mundos ou duas civilizações: de um lado, uma ordem mundial simultaneamente concentradora e excludente, de outro, o sonho de um outro mundo possível. O próprio fato de ser “excluído” é, ao mesmo tempo, denúncia e anúncio, num tempo marcado por profundas assimetrias sócio-econômicas. Denúncia da falta de condições reais para sobreviver em seu próprio meio e anúncio de que mudanças substanciais se fazem necessárias e urgentes.

Os pobres, ao experimentarem no corpo e na alma profundas carências, são portadores dessa nova utopia mundial. Tornam-se, a um só tempo, sinais das contradições da globalização neoliberal e porta-vozes de uma nova ordem mundial. O solo escorregadio da fronteira gera uma atitude ambígua marcada pela experiência de se encontrar fora de casa e da pátria. Nesse não lugar, o não cidadão se depara frente a uma encruzilhada: o que fazer? Entregar-se ao desespero, apelar para a caridade dos vizinhos ou lutar para abrir novos caminhos?

O não lugar, embora indefinido e cheio de riscos, torna-se então fecundo de potencialidades, com vistas a uma nova reflexão sobre a própria existência, sobre a fé em Deus e sobre a prática solidária para com os irmãos e irmãs. Convém não esquecer, aliás, que o próprio Jesus nasceu e morreu fora dos muros da cidade, respectivamente numa gruta e no calvário das execuções. De um lado, diz o relato evangélico, Maria “deu à luz o seu filho primogênito e o deitou numa manjedoura, pois não havia lugar para eles na pousada” (Lc 2,5-7). De outro, ao ser crucificado, o levam para “fora das portas da cidade (Hbr 13,11-12). A família de Nazaré passou, diversas vezes, pela experiência da migração e da exclusão social. Na trajetória que vai do berço-manjedoura à cruz, e desta à ressurreição, a mensagem da Boa Nova do Evangelho mergulha suas raízes no terreno simultaneamente movediço e fértil do não lugar. Numa palavra, até mesmo do ponto de vista teológico, a fronteira é um lugar fecundo para deitar os alicerces do Reino de Deus.

Conclusão

Utilizamos mais uma vez as palavras de Lefebvre para colocar um ponto final em nossa reflexão: “As questões mistas, os acontecimentos marginais, os fatos em contradição aparente ou real, os conceitos laterais, são os mais reveladores e os mais fecundos. As tensões são fecundas, estéreis são as sujeições”[16]. De fato, uma sociedade fechada, cristalizada, petrificada torna-se impermeável à transformação social. A mudança somente será fértil quando se insinua através das brechas e das fissuras das estruturas de auto-suficiência humana, sejam sócio-econômicas, sejam humanas. A situação e o grito dos excluídos, por si só, expõem as incongruências e as tensões de uma determinada ordem social, ao mesmo tempo que cobra transformações profundas. O terreno da exclusão social constitui um campo minado, em que as correntes subterrâneas pressionam por explodir e vir à superfície. Na encruzilhada entre os riscos e as potencialidades da práxis humana, forjam-se caminhos novos em direção a um outro mundo possível.
“O mangue beat é a primeira tentativa de se fazer uma cena no Brasil”, declarava Chico Science em suas primeiras entrevistas, logo que o som do mangue começou a aparecer na mídia. A cena de Pernambuco, com pelo menos duas bandas de grande renome e vários outros grupos lutadores e persistentes foi um grande exemplo de várias pessoas sintonizadas na mesma freqüência, como não havia acontecido em praticamente nenhum momento no Brasil. Eram vários artistas ligados em música e arte em geral, unindo sons rock, tons black e regionalismos.




Como os dois marcos iniciais do mangue foram editados em 1994 [os álbuns Samba Esquema Noise, do mundo livre s/a, e Da lama ao Caos, de Chico Science & Nação Zumbi] fala-se que o movimento está completando dez anos. Não é bem assim. Em 1991, Fred 04, vocalista do mundo livre, e o jornalista Renato Lins, escreveram o manifesto Caranguejos com Cérebro, que apresentava algumas bandas da época [Loustal, Lamento Negro e os próprios mundo livre e Nação Zumbi] e discorria sobre as idéias do pessoal. Na verdade, o texto era para ser apenas um release, mas ao chegar a imprensa, tomou dimensões bem maiores. Em março de 1993, a extinta revista Bizz já publicara uma matéria, escrita pelo jornalista José Teles, que falava do novo som produzido em Pernambuco.



O mundo livre s/a, por sua vez, hoje conta vinte anos de existência, tendo chegado ao disco apenas dez anos depois de sua primeira formação – que já juntava guitarras e instrumentos de samba, ainda que Fred 04 fosse um dos raros punks recifenses [“se tivéssemos chegado ao disco naquela época, seríamos apenas mais uma das bandas esquisitas do rock nacional”, afirmou Fred certa vez].



A comemoração dos dez anos do mangue beat [ou “manguebit”, confusão que surgiu quando a nomenclatura começava a aparecer na mídia] não passou em branco. A DeckDisc acaba de lançar em uma box set intitulada Bit os quatro primeiros CDs do mundo livre, todos até então fora de catálogo. Chico foi lembrado em várias matérias de jornal. Recife continua a ser um grande celeiro de bandas. E tanto a Nação Zumbi como o mundo livre vão muito bem, obrigado. Com Jorge Du Peixe nos vocais, a Nação voltou ao prestígio de antes com o CD Nação Zumbi, o DVD Propagando [ambos pela lançados pela Trama] e o hit “Meu Maracatu Pesa uma Tonelada”. O mlsa segue em sua trajetória político-musical com o disco O Outro Mundo de Manoela Rosário [editado pelo selo Candeeiro].



O começo

Em 1998, a citada Bizz já se chamava Showbizz e publicou uma detalhada entrevista com Fred 04, na qual alguns detalhes do começo de tudo eram revelados. “O mangue nunca foi um movimento”, revelou o líder do mundo livre, apesar de lembrar que houve uma cena, já que os artífices do mangue sofreram influência de termos como “a cena punk” ou coisas do tipo.



”A ‘cena’ apareceu há uns doze anos, quando os festivais começaram a acontecer em Recife. Tinha o Abril Pro Rock, que revelou Chico Science e o resto da turma, além de outros menores”, observa a jornalista recifense Ana Lira. “O movimento mangue no sentido ideológico – dos Caranguejos com Cérebro, de Recife como cidade cosmopolita que recebe as influências de todo o mundo sem perder a identidade – creio que ficou restrito à mundo livre s/a e Chico Science e Nação Zumbi”.



Nadilson Silva, sociólogo e pesquisador do mangue, afirma que “houve, sim, um movimento e ele continua muito forte. Mas não foi nada planejado. Surgiu espontaneamente como qualquer movimento cultural de raiz”. Já Luiz Pattoli, pesquisador de música pernambucana e colaborador do site Rabisco, não concorda. “Os próprios idealizadores usam hoje a palavra ‘cena’ ao invés de movimento. Não há um denominador comum musical entre as bandas. Há sim, uma grande vontade de sacudir a cena cultural de Recife e Pernambuco”.



Antes da Nação Zumbi surgir, Chico era mais conhecido como o funcionário público olindense Francisco de Assis França. O apelido, surgido de sua habilidade em misturar sons, teria sido herdado de Carlos Antonio Ramos Braga [tio do jornalista Renato Lins] – o termo “Science” viera graças a seu fanatismo por ficção científica. Francisco foi se transformando em “Chico Science” conforme aumentava seu envolvimento com a música, ainda nos anos 80. Nessa época, Chico e seus vários amigos – entre eles Jorge Du Peixe, futuro percussionista da Nação Zumbi, Fred 04 e o artista plástico h.d. mabuse – começaram a trocar livros didáticos por discos, que se tornavam de propriedade “coletiva”. Chico, em especial, tornara-se fanático por funk e rap, além da banda independente paulista Fellini. Datam deste período – a segunda metade da década de 80 – grupos como Orla Orbe e Loustal, que tinham Chico como integrante, além do Coletivo Hip Hop, em cujos shows o cantor subia no palco trajado como um rapper de verdade, vestindo uniforme Adidas.



A Nação Zumbi só surgiu no começo dos anos 90, quando Chico tomou contato com o grupo afro Lamento Negro, com quem passa a tocar. O músico instruiu o grupo para que tocasse maracatu e hip hop unidos ao habitual receituário samba-reggae dos blocos afro e às informações que Chico acumulara ao garimpar discos com os amigos – muito funk, rap e regionalismos.



Nadilson Silva fala sobre o caldeirão cultural do movimento: “As influências musicais são todos os ritmos populares locais, como frevo, maracatu, ciranda. Em termos de cultura global, eles escutavam muito o funk americano, hip hop [em especial Beastie Boys] -, Africa Bambaata, dub. Uma pessoa que marcou muito o movimento foi Josué de Castro, um geógrafo que estudou muito a cultura local, os ‘homens caranguejos’”. Geopolítica da fome, livro de Josué, era constantemente citado por Science e 04 e aparece nos versos de uma da sprincipais músicas da Nação Zumbi, "Da Lama Ao Caos".



O mundo livre, por sua vez, já ia para sua segunda década, tendo à frente 04. Jornalista de formação, ele criara o grupo a partir de três bandas punks de Recife [Trapaça, Serviço Sujo e 101] e até os anos 90 seguiria em frente exercitando sua porção de agitador. Criaria programas de rádios [Décadas, na rádio Universitária de Recife, com Renato Lins] e ajudaria a produzir shows. Em 1991, ano do ”Caranguejos com Cérebro”, surgia o festival Viagem ao Centro do Mangue, com as quatro bandas divulgadas no manifesto. “Foi aí que senti pela primeira vez que o público saiu ‘infectado’ “, diria Fred em 1998.



O tal manifesto, publicado posteriormente no encarte do primeiro disco de Science [sem crédito para seus verdadeiros autores] misturava referências geográficas [o rico ecossistema do mangue de Recife, tomado com símbolo] e históricas para contrastar a “fertilidade, diversidade e riqueza” da cena local com o crescimento desordenado da capital pernambucana. O texto explicava que a idéia da cena era “engendrar um círculo energético capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop”. Afirmava também que os mangueboys e manguegirls eram interessados em “quadrinhos, tevê interativa, antipsiquiatria, Bezerra da Silva, hip hop, midiotia, artismo, música de rua, John Coltrane, acaso, sexo não virtual, conflitos étnicos e todos os avanços da química aplicada no terreno da alteração e expansão da consciência”. Um conceito perturbador e diferente em termos de pop nacional – visto que, desde os anos 60, não aparecia uma cena regional que parecesse tão antenada, auto-sustentável e articulada.



“O mangue é o movimento cultural mais importante para a música pop local desde a Tropicália. Quebrou a barreira da hegemonia da música do sudeste e de Brasília em nosso pop. Absorveu a cultura de fora, mas reverteu o processo. Um movimento para pessoas antenadas com o mundo, mas que não desprezam a cultura local”, coloca Nadilson, referindo-se à “parabólica na lama”, da qual os mangueboys sempre falavam.
Caranguejos Com Cérebro


por Fred Zero Quatro

O primeiro manifesto do Mangue, na íntegra e em sua versão original de 1992.



Mangue, o conceito

Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo.



Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente importantes dependem do alagadiço costeiro.



Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.



Manguetown, a cidade

A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex)cidade *maurícia* passou desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais.



Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de *progresso*, que elevou a cidade ao posto de *metrópole* do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.



Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada a permanência do mito da *metrópole* só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano.



Mangue, a cena

Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.



Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um *circuito energético*, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.



Hoje, Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.



Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de moda, vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown.
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA


SEM APRESENTAR DADOS NOVOS, "FALCÃO" LANÇA UM OLHAR TERNO SOBRE OS PEQUENOS TRAFICANTES, MAS SUBMERGE NA CULTURA DO GUETO E IGNORA OS DEMAIS ATORES SOCIAIS, PRESENTES EM "NOTÍCIAS DE UMA GUERRA PARTICULAR"



ALBA ZALUAR

ESPECIAL PARA A FOLHA

Falcão é a ave que enxerga longe e mata sem hesitar qualquer ser que ameace o seu ninho. No imaginário dos apelidos, revela uma ruptura com os apelidos afetivos, em diminutivo, que tanto inspiraram Sérgio Buarque de Holanda a refletir sobre a cordialidade brasileira. Estará o Brasil desmantelando-se enquanto cultura e personalidade nacional?

Essa talvez seja a menor das reações ao impacto que o documentário "Falcão" [exibido pelo "Fantástico", da TV Globo, no domingo passado], do rapper MV Bill e do empresário Celso Athayde, provocou nos que o assistiram. Fica provado mais uma vez o poder de comunicação que o veículo televisão tem sobre os demais, não só pela sua capacidade de penetrar em tantos lares mas pela força das imagens, associadas à voz e à letra do que é dito.

Textos, especialmente se acadêmicos, não poderão jamais competir com tanta veracidade contida na imagem e na voz nem com a velocidade da comunicação televisiva.

De fato, o documentário não traz nenhuma novidade do ponto de vista da pesquisa. O que está dito pelos meninos entrevistados já fazia parte do acervo colecionado pelos pesquisadores que se embrenharam nas favelas do Rio de Janeiro, Recife, São Paulo e Porto Alegre, principalmente na primeira cidade, já na década de 80. Eu estava ouvindo mais uma vez as entrevistas que fiz inicialmente só e, depois, com estudantes universitários que moravam na Cidade de Deus, com os mais importantes personagens dessa tragédia urbana brasileira.

Qual a contribuição do documentário "Falcão"? Sem nenhuma orientação acadêmica, mas provavelmente usufruindo um roteiro já traçado pelos pesquisadores há anos, o rapper e seu empresário se embrenharam por locais pouco ou nunca visitados nas cidades brasileiras, ouvindo os meninos e suas mães, reconhecidos apenas pelo sotaque, colocando-os lado a lado em um painel de sofrimento, tragédia e desalento.

O desalento é evidente: no beco sem saída, na lucidez dolorosa da vida desperdiçada, marcada para morrer, que os meninos e suas mães repetem sem que vejam nenhuma possibilidade de saída. Os falcões e suas mães já têm seu destino traçado numa tragédia que parece não deixar lugar para o sujeito da ação.



Imaginário em contraste

Depois desse documentário, dificilmente vai se manter uma outra marca oscilante do imaginário nacional: a maravilhosa cidade do Rio de Janeiro ou a cidade fonte dos horrores do Brasil. Uma gangorra difícil de entender. Síndrome metropolitana dos perigos e dos horrores, o Rio de Janeiro continua a ser apontado como a cidade mais violenta do Brasil, o centro do tráfico de drogas.

Os sotaques nordestinos, gaúchos, paulistas e as imagens de Brasília desmentem isso e comprovam o que pesquisadores têm apontado: a questão é nacional, que exige o cumprimento de um plano nacional de segurança pública.

Vai além: produz no espectador simpatia pelos meninos do tráfico. Não é pouca coisa. Com sensibilidade e ternura, aberto a ouvir o outro, o documentário rompe com uma das características da violência: a impossibilidade de pensar e sentir desde a perspectiva do outro.

Mesmo aqueles meninos que produzem tanto medo quando se os encontram nas ruas em situações de roubo, são humanos e, além do mais, sofrem, sentem falta de amor, acima de tudo respeitam suas mães, têm medo e sabem que vão morrer.

Agora vai ficar difícil construir um inimigo desvalorizado, desumanizado, estratégia comum para justificar a crueldade com que se os enfrenta na guerra, na medida em que os meninos são apresentados, eles também, como vítimas de algo que lhes escapa.

Mas aqui mesmo começam nossas divergências. Para sair do vitimismo, só os considerando na sua capacidade de agir, para além dos constrangimentos que a estrutura social lhes impõe. Nem todos os meninos de tráfico saíram de famílias chefiadas por mulheres, nem todas essas famílias são produtoras de meninos destinados a se tornarem traficantes. Só muito recentemente ouvi falar de crianças brincando de "boquinha", o que ainda aumenta mais a impressão de que não há mais saída.

Mesmo na Cidade de Deus, no auge da guerra entre Batata e Zé Pequeno, na praça onde morou e morreu Manoel Galinha, vi crianças jogando bola, capoeira, aprendendo a bater nos instrumentos de percussão e tudo isso que pode ser encontrado em qualquer favela do Rio de Janeiro, mesmo as mais abandonadas pelo poder público. A favela é muito, muito mais que o tráfico.

O que importa é saber que muitas dessas crianças, cerca de 80% delas, não são atingidas pela cultura que se desenvolve nas ruas, que as prepara para a crueldade e as anestesia para o sofrimento alheio, para a vida, para a morte. Não fora o trabalho constante e dedicado de muitos voluntários de vários tipos de organização, certamente o exército dos traficantes, matadores e exterminadores seria muito maior.



Unilateral

Nesse sentido, não teria sido mais frutífero fazer com que também os meninos que desejam agora matar e roubar -e se acostumam com a violência no uso das armas da morte, dos pneus do sadismo- desenvolvam a capacidade de olhar o próximo sem ódio e sem visões persecutórias que só podem acabar com a destruição completa do outro?

O documentário é unilateral. Poderia ter sido mais se pusesse vítimas dos assaltos, muitas delas tão destituídas quanto os meninos assaltantes e assassinos, a falar do que sofrem quando perdem seus bens e entes queridos.

Por que não ouvir também os policiais que, apesar da função guerreira que lhes é destinada na estratégia policial de hoje, se negam a assumir as mesmas posturas sádicas e cruéis de outros colegas que perderam o controle sobre a sua capacidade de serem violentos, exatamente como os meninos? Serão todos, policiais e meninos do tráfico, meros fantoches da banalidade do mal que os faz tão obedientes às ordens superiores?

Estudos recentes dizem que não. Até mesmo na Alemanha nazista havia os que se recusavam a cumprir ordens, que adoeciam, que fugiam. O documentário de João Moreira Salles sobre a guerra particular entre policiais e bandidos na favela Santa Marta ["Notícias de uma Guerra Particular"] é, nesse sentido, mais completo. São muitas as vozes, muitos os atores do drama.

Trata-se, então, de dissolver um círculo vicioso que atrela os medos e ódios em cadeias de vingança e desconfiança sem fim. Para isso, é preciso tirar as vendas que cegam sobre tudo o que se passa fora do território mais próximo, das identificações mais restritas. O veículo para isso é a transposição para outros mundos, a abertura para quem, de fora, fala daquele e de outros mundos, seja pelo texto, seja pela imagem.

Tanto no documentário quanto nas falas antes e depois da apresentação, seus diretores constroem o lugar da autenticidade única que só os que vivem nas favelas podem ter para falar do lugar. Nem cineastas nem antropólogos ou sociólogos teriam a legitimidade para pensar e falar sobre esses locais, também considerados territórios fechados, exclusivos de seus moradores, os únicos que poderiam escrever a sua própria história. Uma das armadilhas da pesquisa etnográfica parece ter sido abraçada como missão pelos dois diretores: afundar no próprio universo, com o risco de manter a cegueira.

No fundo, uma continuidade com o movimento que também é próprio das organizações juvenis baseadas no território. No fundo, a cultura do gueto, que também aprisiona pelo lado de dentro, fechando as pontes, os laços, os contatos com o mundo de fora. É justamente isso o que mais alimenta a violência.

E faltou também esse personagem principal da tragédia dos meninos: os traficantes, os chefes de quem são fiéis seguidores. Os meninos ganham pouco, são carentes, têm medo, sofrem. E os traficantes que, com uma lógica instrumental, apenas os usam para acumular lucros extraordinários? Qual a dúvida que têm sobre o seu papel aliciador de menores? Qual a justificativa que oferecem para o seu negócio que destrói mentes, corações e vidas?

Nas entrevistas que fiz, sujeitos com fraturas expostas que sujeitam meninos, conhecidos pelos trabalhadores como teleguiados, não conseguem esconder suas dúvidas e contradições.

Não há razão para crer que nenhum desses personagens está sem saída, que seu destino foi marcado inexoravelmente pela miséria de suas famílias, pela ausência dos pais, pelo desamparo de demais protetores, pelo fracasso dos serviços públicos. Mas não resta a menor dúvida de que é preciso fazer muito mais para ajudar os que ficaram presos nas malhas do crime e da violência pela violência.

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Alba Zaluar é antropóloga e coordenadora do Núcleo de Pesquisa das Violências, ligado ao Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autora de "Integração Perversa - Pobreza e Tráfico de Drogas" (FGV).



FALCÕES OU POMBOS-CORREIO?

PÚBLICO CONSUMIDOR POTENCIAL QUE FAZ GIRAR O MERCADO DAS DROGAS, CLASSE MÉDIA DESAPARECE DA REPRESENTAÇÃO NO DOCUMENTÁRIO DE MV BILL E CELSO ATHAYDE



DENIS LERRER ROSENFIELD

ESPECIAL PARA A FOLHA

Há o grau zero de apresentação da realidade? Seria possível dizer que uma realidade pode ser considerada, em si, como nua e crua, como se uma sucessão de imagens pudesse esgotar algo que consideramos, definitivamente, como verdadeiro? Tal é, no entanto, a pretensão do filme "Falcão", feito por MV Bill e Celso Athayde. Os comentários e as reações posteriores tenderiam a confirmar essa aparente intenção.

Evidentemente, as imagens são impactantes e comoventes, e a tragédia daqueles meninos banidos de uma sociedade civilizada clama por uma solução. Não se pode, contudo, desconhecer outros autores ausentes nem cair na hipocrisia.

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O próprio ministro da Justiça se declarou impactado com o que tinha visto; será que ele desconhecia essa realidade?

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A câmera, ao selecionar imagens, ao recortar a realidade sob um determinado prisma, não deixa de julgar em sua pretensão mesma de apresentar aquele caso como sendo exemplar e neutro. Em um primeiro momento, podemos ter a sensação de que aquilo que é apresentado consiste numa mera descrição, à maneira de um botânico fazendo a descrição de uma planta.

No caso de uma câmera apresentando um grau extremo de miséria humana, sob uma ótica, digamos, naturalista, o impacto da cena -o seu mexer com nossas emoções, o seu despertar mais fortemente valores morais- vela, por assim dizer, o ângulo de recorte da realidade.

Ora, esse ângulo é valorativo ao escolher um enfoque, ao querer dizer que essa é a verdadeira realidade, ao colocar aqueles meninos como presas do destino. O presente esconde o ausente. Bandidos se tornam "bandidos sociais" no interior de uma engrenagem apresentada como se fosse inexorável.

Os "falcões" são, na verdade, pobres pombinhos, vítimas de uma realidade que os ultrapassa. A posse de armas e o portar fuzis e pistolas produz um forte sentimento de auto-estima, que é reconhecido, inclusive, pelas meninas que gostam de meninos assim "armados". Eles são, porém, meros "operários", "abelhas" de uma fábrica que os emprega, pagando-lhes salários maiores que os que teriam num emprego da sociedade normal, a que se situa fora das favelas.

Essa "normalidade", eles chegam mesmo a ironizar pelos pequenos valores pagos e pelo seu descuido para com eles, enquanto a "firma" lhes dá sustento e reconhecimento, mesmo que por um curto período de vida. As imagens daquela "firma", funcionando no corte da maconha, no seu esfarelamento e no seu empacotamento, mostram uma divisão do trabalho em estado embrionário, mas altamente produtivo, dado o retorno que os "investidores" têm.



Outro lado

Mas aí surgem perguntas. Onde estão os "investidores"? Onde estão os "donos da firma"? Onde estão os grandes beneficiários desse negócio? A câmera não os encontrou? A câmera não os selecionou? Não têm eles responsabilidade naquilo que é apresentado como um destino desses meninos, como se não tivessem outra alternativa na vida?

Drogas são vendidas e consumidas. A "firma" produz para um mercado, que deve ser altamente lucrativo, considerando a expansão de sua produção e a sofisticação de sua rede de distribuição, o seu "comércio" propriamente dito.

O narcotráfico só tem crescido, o que mostra a pujança de sua atividade e a ampliação do seu mercado consumidor. Apresentar a realidade como se o "crack" e a "maconha" fossem principalmente consumidos pelos "falcões" é uma evidente falsificação da realidade, pois os verdadeiros consumidores são constituídos por pessoas abastadas, que podem pagar o alto preço da cocaína e de outras drogas.

Ou seja, o mercado consumidor é formado por uma alta classe média que não "aparece" naquelas dramáticas cenas. Onde estava a câmera naqueles instantes? Não haveria nada aqui a ser visto ou ao menos descrito por meio de palavras se a câmera não os pôde alcançar?

O Estado aparece sob a forma de policiais corruptos, cuja única preocupação seria uma espécie de luta de vida e de morte com aqueles "meninos". Trata-se de um combate entre o animal e a sua presa, em que os papéis freqüentemente se invertem nos lutos que levam ao cemitério.

Grassa a impunidade, embora os meninos sejam "punidos" por essa realidade, porque raramente atingem aquilo que consideramos a vida adulta propriamente dita, pois antes disso são mortos. Eles são "punidos", sem que haja estabelecimento de culpa, instrução de processo ou julgamento.

Num certo sentido, não haveria impunidade, pois eles seriam, de qualquer maneira, "criminosos".

No entanto uma punição sem Estado é nada mais do que a vigência de um estado de natureza em que tudo vale: a generalização da violência. Há, porém, um outro tipo de impunidade que tampouco aparece no filme, a impunidade dos responsáveis do narcotráfico e dos que compactuam ou colaboram com essa situação. E dessa impunidade, o Estado é profundamente responsável, e essa não se faz com medidas sociais, mas propriamente institucionais, isto é, jurídicas e policiais.



Menos hipocrisia

Antes do filme de MV Bill e Celso Athayde, um outro filme, igualmente forte, "Notícias de uma Guerra Particular", de João Moreira Salles e Kátia Lund, mostrou a mesma realidade sob uma outra ótica, dando a voz a outros atores, como os policiais envolvidos na repressão desses agentes e olheiros do narcotráfico ou referindo-se aos consumidores.

Naquele, então, as reações foram igualmente vigorosas, com autoridades lamentando uma tal situação e a sociedade exigindo soluções. Nada, entretanto, verdadeiramente mudou. Passado o impacto, tudo voltou a ser como antes, talvez no aguardo de um outro filme que despertasse transitoriamente as mesmas emoções.

O próprio ministro da Justiça [Márcio Thomaz Bastos] chegou a se declarar impactado com o que tinha visto. Será, porém, que o ministro e as outras autoridades desconheciam essa realidade? Não a conheciam de suas próprias fontes policiais? Não tinham visto o filme anterior de Moreira Salles, os clipes do próprio MV Bill ou não tinham, ainda, escutado as suas músicas? E os comentários televisivos de pessoas chocadas que também compactuam com o silêncio reinante?

Contornos de compaixão não são necessariamente morais. Talvez um pouco menos de hipocrisia faça bem à sociedade brasileira.

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Denis Lerrer Rosenfield é doutor pela Universidade de Paris 1 e professor titular de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É autor de "Política e Liberdade em Hegel" (Ática), entre outros.



AS ASAS QUEBRADAS

SEM PERSPECTIVAS OU REFERENCIAIS, CRIANÇAS SE ENVOLVEM NO NARCOTRÁFICO PARA EXORCIZAR O MEDO E FANTASIAR A ONIPOTÊNCIA DA VIDA ADULTA



MARIA RITA KEHL

ESPECIAL PARA A FOLHA

Falcão - Meninos do Tráfico" mostrou a milhões de telespectadores da TV Globo, no domingo passado, a vida de algumas crianças incapazes de alçar vôo; aos três anos, a força arrasadora do real já lhes cortou as asas da imaginação. Aos seis, brincam de vender maconha e cocaína, de torturar e executar os alcagüetes queimados dentro de um pneu ou executados a bala na sarjeta. De mentirinha? Brincam para tentar exorcizar o medo: treino de sobrevivência na barbárie. O que você quer ser quando crescer? "Bandido."

O que lhes sobra para fantasiar se a onipotência, motor da fantasia infantil, se realiza todos os dias na forma da tirania praticada por seus irmãos mais velhos, por tios e pais adolescentes destinados a morrer antes dos 20 anos? Do ponto de vista da constituição psíquica, a fantasia é o suporte do desejo. Fundamenta a experiência da interioridade, de um "si mesmo" que mede sua diferença em relação ao mundo real. Uma subjetividade sem fantasia é uma terra devastada, sujeita a servir ao gozo do outro.

Assim, de pequenino, se torce o pepino. O discurso único do tráfico se instala, totalitário, impedindo a imaginação das crianças das favelas cariocas. Na falta de espaço para outras fantasias, não há um ponto de fuga onde ancorar outro desejo senão o desejo de morte projetado na droga, na licença para matar, no poder irresistível do terror sem lei. Um tal desejo está fadado a se realizar, sem demora.

Desde os primeiros minutos do documentário, esse terror produziu seus efeitos sobre mim. Flagrei-me acalentando idéias de extermínio. Quantos espectadores do "Fantástico" não terão se envergonhado ao pensar que a morte desses garotos até que poderia ser bem-vinda?

Depois, compreendi que estava contaminada pela única fantasia (ou profecia?) deles. Destes que se pensam sem futuro e se engajam no tráfico por um salário mínimo (!) e dois ou três anos de "fama" antes da morte certa.

Na voz chapada do menino de dez anos, o jargão da crítica social se transforma em ideologia conformista: "Faço isto porque ninguém me deu nada".

No lugar desse nada, a droga instala um vazio mais suportável: "Não fico triste, tô sempre se drogando", diz a criança que já sabe que sua existência não conta: "Se eu morrer, vem outro como eu". Mas não deixa de lamentar sua desesperança: "É muito esculacho nessa vida...".



Selvageria de mercado

O tráfico de drogas não é antagônico às economias de mercado: é sua extensão selvagem. As sociedades ditas liberais convivem com ele por uma afinidade lógica: os lucros astronômicos formados com base em trabalho escravo (voluntário) falam a mesma língua de outras formas de acumulação acelerada de capital.

O capital financeiro, por exemplo, cuja lógica dispensa a negociação política, também nos esteriliza para sonhar com um mundo mais justo.

O tráfico, como o capitalismo, produz os sujeitos dos quais se alimenta. De um lado, no asfalto, estão os consumidores do único meio de gozo tão potente que dispensa a publicidade. Do outro lado, da linha de montagem e da distribuição, está um exército de servidores voluntários. São escravos: quem entrou, só sai morto. As crianças sabem disso, mas entram. Não há poder mais eficiente do que aquele que se sustenta sobre o desejo dos dominados.

Entre os consumidores que vivem no asfalto, há quem se sirva da droga para sonhar. Mas na ponta de cá, quem se droga não sonha. A droga é a hiper-realidade cotidiana, aliada ao medo e ao poder dos fuzis: quem vacilar sabe que vai morrer. O que equivale a uma condenação sumária: impossível viver sem, vez ou outra, vacilar. Por isso, para as crianças aliciadas desde que deixam a barra das saias das mães, nenhum sonho é possível. Quem sonha, mais cedo ou mais tarde, vacila. Assim se fecha o circuito do gozo mortífero contra o qual as crianças são indefesas.

Indefesas porque lhes falta pai, dizem os pequenos entrevistados por MV Bill. Mas sobretudo lhes falta, na favela excluída do poder público, qualquer outra referência que sustente a lei simbólica -a que interdita o gozo e possibilita o investimento das pulsões de vida em objetos possíveis, não absolutos. A lei da droga é absoluta. Não há nada que interdite o discurso do gozo que gira em torno dela.

Nada além do desejo quase impotente de algumas jovens mães. Os psicanalistas costumam desconfiar do poder das mães; é um mal-entendido a respeito da função paterna. A falta do pai, por morte ou abandono, fere e desampara o filho. Mas, se a mãe está "na lei", a função paterna opera por meio de seu discurso. Uma delas, aparentemente muito jovem, diz que seu filho de dois anos "sabe tudo" sobre o tráfico. Mas acrescenta: "Eu quero que ele saiba o que não é o tráfico. Que ele saiba que existem outras coisas no mundo".

É claro que para isso é preciso que o mundo, o "nosso" mundo, inclua a favela e introduza, na vida dos candidatos a falcão, outras perspectivas.

Outra mãe conseguiu legar ao filho um fragmento de sonho: prometeu levá-lo ao circo. Morreu, deixando o menino marcado por um desejo -e uma falta- que a droga não podia satisfazer. Desejo de infância e de magia, riso, brincadeira.

Levado pela equipe de filmagem ao circo, o jovem operário da indústria da droga ainda teve tempo de desejar outra vida. Pensou ser palhaço: a face benigna do "nonsense". Quem sabe, esculachar o esculacho.

Mas não conseguiu deixar o tráfico e morreu (como outros 15 entre os 16 entrevistados) antes de o documentário de seu mano Bill ter ficado pronto.

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Nota

Colaborou Maria Marta Assolini.

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Maria Rita Kehl é psicanalista, autora de "Ressentimento" (Casa do Psicólogo).















LADAINHAS DAS SEIS DA TARDE

JOÃO MOREIRA SALLES DIZ QUE EXÉRCITO PODE SE CORROMPER E QUE DISCURSO DA VIOLÊNCIA É DE UMA "MONOTONIA ACACHAPANTE"



SYLVIA COLOMBO

EDITORA DO FOLHATEEN

Nem "zelo missionário" nem "bons sentimentos". Não é com esse tipo de arsenal que o cinema pode colaborar na discussão sobre o tráfico de drogas e a violência nos morros do Rio. Para o cineasta João Moreira Salles, diretor do documentário "Notícias de uma Guerra Particular" (que está sendo lançado em DVD), agora é hora de contar histórias diferentes sobre as favelas.

Ele mesmo, entretanto, diz que não quer mais voltar lá ("o discurso da violência é de uma monotonia acachapante") e fala de "Falcão", que faz "perguntas duras", sem fazer "qualquer elogio ao bandido social".

Leia a entrevista que o cineasta concedeu à Folha, por e-mail.



Folha - Na entrevista que está no DVD de "Notícias de uma Guerra Particular" (Videofilmes), você diz que a idéia era fazer um filme sem sociólogo, sem cientista político. Fernando Meirelles, quando lançou "Cidade de Deus" (2002), respondeu aos que diziam que o filme não tratava o tema com profundidade que não queria fazer sociologia, e sim cinema. MV Bill também disse querer que "Falcão" não tivesse esse tipo de explicação. Por que essa idéia, que parece generalizada, de que uma reflexão acadêmica sobre o tema é um problema?

João Moreira Salles - Não é problema nenhum, pelo menos para mim. Certamente a melhor reflexão sobre a violência não está sendo feita pelos escritores, cineastas, dramaturgos ou cantores de hip hop, mas pela academia. Houve um momento em que os escritores -penso especialmente em Rubem Fonseca- chegaram antes ao assunto e nos avisaram com anos de antecedência o que iria acontecer.

Hoje são cientistas sociais como Claudio Beato, Alba Zaluar, Julita Lemgruber, Luiz Eduardo Soares, Inácio Cano, Michel Missi, entre tantos outros, que estão na fronteira.

A relutância que você aponta nada tem a ver com a academia. Diz respeito apenas ao documentário. Insisto em dizer que a única questão relevante para o documentário é o próprio documentário, é o modo de fazer e de narrar.

Nenhum filme será importante se, antes de tudo, não pensar em si mesmo. A maldição do documentário é acreditar que ele se esgota no tema. No limite, o tema é quase irrelevante. Há grandes filmes sobre praticamente nada, e filmes péssimos sobre grandes temas.

A estrutura clássica, velha de mais de 60 anos, na qual especialistas sentados em seus gabinetes oferecem opiniões sobre um determinado tema, está esgotada. É impossível fazer um filme vigoroso empregando essa maneira de narrar. Evitei os especialistas não por descaso com eles, mas por apego ao documentário.

É só isso. Não é pouco.

Folha - Como você vê a ação recente do Exército nos morros do Rio? É contra ou a favor? Por quê?

Moreira Salles - Até onde sei, o Exército não tomou a decisão de se tornar um aparelho de combate à violência urbana. Por enquanto, o incidente dessas últimas semanas é apenas isto: um incidente, motivado por orgulho ferido.

Sem dúvida nenhuma, o Exército assumiu um risco quase irresponsável, porque, se as armas não fossem encontradas, ele estaria desmoralizado. Por isso ele as encontrou. Como o fez, ninguém sabe direito. Existem várias dúvidas. Talvez tenha negociado com bandidos, talvez não.

Vê-se desde já que uma ação dessas abre a possibilidade de vasos comunicantes entre quem reprime e quem é reprimido. Em pouco tempo, o Exército poderia ficar parecido com a polícia.

O que menos precisamos neste momento é de um Exército infiltrado pelo narcotráfico. A ação repressora é eminentemente técnica, o Exército não foi preparado para empreendê-la. A população, que com razão se vê apavorada, aplaude, sem pensar que, com o tempo, podemos estar corrompendo mais um aparelho do Estado -e, dessa vez, aquele que mais tem armas.

Folha - Por que "Notícias" não tratou do "outro lado do balcão"? Ou seja, por que não houve uma preocupação de ouvir a classe média, que consome a droga traficada na favela?

Moreira Salles - Porque meu tema não eram as drogas, era a violência. O consumidor é importante, mas ele se mantém longe dos tiros e das mortes. Dito isso, não seria incorreto afirmar que o consumidor é o grande sujeito oculto de "Notícias".

Folha - É possível comparar "Notícias" com filmes como "Os Donos da Rua" (EUA, 1991) e "O Ódio" (França, 1995), no sentido de que reforçam uma demanda do público, predominantemente de classe média, por temas relativos à bandidagem? Tem havido mais glamourização do tema?

Moreira Salles - "O Ódio" eu assisti recentemente, mas "Os Donos da Rua" eu vi há muito tempo e não me lembro dele. Mas entendo a pergunta. Não acho que ela seja específica. O desvio sempre exerceu fascínio. Dizem que, no "Paraíso Perdido", de John Milton [1608-1674], o grande personagem é Lúcifer.

É evidente que um filme sobre uma guerra sangrenta de gangues terá sempre mais apelo comercial do que um documentário sobre carmelitas enclausuradas. Mas isso não significa que todos os filmes que abordam a violência sejam cínicos. Alguns são, a maioria dos americanos é; os nossos, nem tanto.

Pegue "Falcão": MV Bill faz perguntas duras, fala em "vocês que espalham a desgraça", mostra que bandidos executam tanto quanto a polícia. Seria má-fé ver ali qualquer elogio ao bandido social.

É da tradição do cinema refletir as questões do seu tempo. A violência é uma destas questões.

Folha - Você disse que "Notícias" é um "filme de urgência". Hoje, quase sete anos depois, esse "estado de urgência" segue existindo no morro. O quão urgente é debater um tema que já se tornou de uma urgência crônica?

Moreira Salles - Do ponto de vista do cinema, urgente mesmo é ir à favela -se houver mesmo essa insistência de voltar à favela- para tratar de qualquer assunto que não seja o da violência. Por que essa obrigação? Por que imaginar que lá não existem outras histórias? Por que não contar uma história de amor? É preciso tomar cuidado com isso.

A tirania do tema único é sobretudo a tirania do personagem sem movimento, paralisado num enredo único e pobre. Nasce, vive um pouco, mata um pouco, morre. O mundo fica achando que é só isso.

De um modo geral, nosso cinema deveria olhar menos para baixo e erguer os olhos, se não para cima, onde estão os poderosos, ao menos para os lados: cineastas falando do seu mundo.

Do contrário, passaremos a vida repetindo a mesma fórmula de 90% dos filmes não-ficcionais brasileiros: os que têm, repletos de piedade e de indignação, filmam os que têm menos ou nada têm. Chega de tanto zelo missionário, de tão bons sentimentos. Por que não enfrentar o que é realmente difícil? A vida da gente, os nossos afetos, a nossa eventual mediocridade, a nossa eventual impotência?

Basta olhar a Argentina e aprender um pouco com eles. A respeito do debate do tráfico, acho que já estamos fazendo isso há muito tempo. Certamente não é o cinema que dará uma contribuição importante para a discussão. Não é o nosso papel. O papel do cinema é refletir sobre si mesmo. É avançar a gramática.

Folha - Se você fosse subir ao morro hoje, que pergunta acrescentaria a seus entrevistados?

Moreira Salles - Eu não subiria o morro novamente. Uma coisa que aprendi é que o discurso da violência é de uma monotonia acachapante. Lembra as ladainhas das seis da tarde. As mesmas palavras, de novo, de novo.

O CINEMA DE PALAVRA

PIONEIRO, EDUARDO COUTINHO DIZ QUE A REPRESENTAÇÃO DO TRÁFICO SUBSTITUIU A DO MORRO, NA TV E NO CINEMA



MARCOS STRECKER

DA REPORTAGEM LOCAL

Encontrar o limite entre ficção e realidade é uma discussão que está na origem do cinema. De Robert Flaherty a Joris Ivens, passando por movimentos como o neo-realismo, a "nouvelle vague" e os seus descendentes, o tema da diferença entre o autêntico e a sua representação -ou melhor, se de fato existe essa distinção- está mesmo na origem da discussão sobre o documentário como gênero.

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Prefiro tratar de coisas em lugares onde nada acontece

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Periferia dos centros produtores e de crítica, o Brasil sofreu com a forte ideologização que marcou a discussão sobre o cinema documental das décadas de 60 até 80. A política estava na ordem do dia. Mostrar a verdade era mostrar os "oprimidos", numa forma estética que derivou ela mesma para o ideológico e autoritário. Não é surpresa que tenha sido da "periferia", à margem dessa discussão, que se firmou no final dos anos 80 o principal documentarista brasileiro, pai da atual geração.

Bem antes de vários cineastas subirem o morro para registrar a "realidade" das favelas, Eduardo Coutinho já conversava com seus moradores. "Santa Marta - Duas Semanas no Morro" (1987), "Santo Forte" (1999) e "Babilônia 2000" (2000) exploram diferentes temas sobre as comunidades. Seu cinema se aproxima dos pioneiros do documentário, procurando compor um retrato antropológico dos seus personagens.

Ironicamente, agora que o recrudescimento da violência provocou um excesso de imagens e a banalização da violência, é o próprio Coutinho que não vê mais razão em filmar os morros. Foi o que o autor de "Edifício Master" e "Cabra Marcado para Morrer" disse em entrevista à Folha.



Folha - Como o cinema e a TV representam o morro hoje?

Eduardo Coutinho - Eu não falo de filmes dos outros, que não os meus... Mas posso dizer o seguinte: o que tem aparecido não é nem a questão do morro, mas do tráfico. A emergência das drogas e o crime mais (ou menos) organizado. Os filmes são sobre isso, que é o que está na mídia.

Nos meus filmes -fiz três sobre favelas- simplesmente ignorei a presença do tráfico. Ou melhor, ele entrou porque acabou entrando na voz dos outros. Mas nunca foi meu interesse fazer filme sobre o tráfico.

Em "Santa Marta", fiz um filme sobre a violência na favela, a violência simbólica, a violência inclusive "terna" do morro, entende? E nele apareceu mais o tema do tráfico. Mas nos outros dois -um sobre religião e "Babilônia"- eu não queria incluir nenhuma questão sobre o tráfico. Agora, apareceu nos depoimentos, eventualmente. "Meu irmão morreu", por exemplo. Então entra como um elemento acessório, embora seja essencial para as pessoas.

Folha - Sua forma de filmar quase criou um estilo, um gênero de filme do morro, um novo realismo. Você acha que criou seguidores?

Coutinho - Na verdade, vários desses filmes [feitos atualmente] são de observação, não são filmes de entrevista. Eu só posso te responder o seguinte: eu tento não usar a palavra entrevista nem depoimento. Tento conversar com as pessoas. Quando realizei "Santo Forte", era um filme que ninguém queria fazer, e eu fiz. Chamo isso de cinema da palavra.

Folha - Você parece se preocupar muito com a intimidade e a individualidade dos moradores. Até onde o cineasta pode ou deve mostrar?

Coutinho - Cada filme é um filme. No meu caso, eu não trabalhei com máscara. Toda referência que houve ao tráfico era o de um tráfico antigo, porque do novo ninguém vai falar. É evidente que referências [sobre tráfico ou violência] jamais entrariam na medida em que envolvesse o bem-estar da pessoa e de mim mesmo. Isso até é um detalhe.

Mais complicado, na verdade, é tratar de coisas pessoais. Nem é uma questão da favela. Aconteceu quando entrevistei uma garota de programa. Faço questão de dizer que ela não está falando para mim, mas para a câmera. Cada vez que entrevisto uma pessoa, me pergunto: por que ela está dizendo isso? No caso da garota de programa, ela sabia que ia aparecer e não via problema nisso, porque a família sabia. As questões éticas aparecem caso a caso.

Folha - Você fala da diferença entre o tráfico antigo e o novo...

Coutinho - Nos meus filmes em que aparece o morro, quando aparecia o tráfico, foi no começo da guerra civil, em 86, 87. Essa guerra civil séria que tem já 20 anos e que vai continuar. Bem, isso aparecia mais. Agora, mesmo sem eu perguntar sobre isso, algumas pessoas se referiam ao grupo antigo que dominava o morro, era um grupo considerado odioso por eles. Eu deixei no filme porque era um grupo que não voltaria mais, é um outro cuidado.

Folha - Seu segredo é filmar sem um objetivo definido, procurando uma realidade que deve ser apreendida?

Coutinho - Enquanto puder fazer filmes em que não tenha nada a dizer, continuarei a fazer filmes... Se tiver que fazer algo para denunciar, a guerra de sei lá o que, a luta de classes, o lixão... Isso não faço. Faço filmes para saber como vivem as pessoas. No caso, pessoas que vivem em condições que não são as minhas. O que penso delas é secundário.

Folha - Você acha que seus filmes acabam mostrando uma certa realidade brasileira, o conflito entre o arcaico e o moderno, por exemplo?

Coutinho - Todos os tipos de conflito aparecem. Eu não filmo o Brasil, filmo um lugar. Isso em todos os filmes que tenho feito, praticamente. O que não significa que eu não esteja interessado no geral. No caso de "Edifício Master", por exemplo, não estou procurando o morador típico, que vai dizer aquilo que para mim é típico da classe média.

Quando estou falando com uma pessoa da comunidade rural, falo dela. E acho que dela se alude ao tipo de cultura, de conflitos, de coisas que permeiam o Brasil, entende? Cabe aos que ouvirem essas pessoas fazerem as leituras mais diversas.

Folha - Voltando ao caso específico do Rio, com o recrudescimento do conflito, agora até com o Exército, isso inspiraria você de alguma forma? Se você fosse filmar hoje o morro, isso te influenciaria como?

Coutinho - Dada essa conjuntura explosiva, que ainda vai durar muito, eu simplesmente não vou mais filmar os morros. Enquanto tiver essa situação, não me interessa, entende? Eu não estou interessado em filmar conflitos. A guerra de Israel com os palestinos não me interessa, por exemplo. Acho que cada vez mais vai haver filmes e programas de televisão que podem, sem dúvida, ser necessários. Mas não estou nessa, não. Prefiro tratar de coisas em lugares onde nada acontece. Onde a única coisa que acontece é o seguinte: você coloca uma câmera e algo acontece dentro da câmera. Nada aconteceu antes nem depois.

080406