segunda-feira, 25 de abril de 2011

“O mangue beat é a primeira tentativa de se fazer uma cena no Brasil”, declarava Chico Science em suas primeiras entrevistas, logo que o som do mangue começou a aparecer na mídia. A cena de Pernambuco, com pelo menos duas bandas de grande renome e vários outros grupos lutadores e persistentes foi um grande exemplo de várias pessoas sintonizadas na mesma freqüência, como não havia acontecido em praticamente nenhum momento no Brasil. Eram vários artistas ligados em música e arte em geral, unindo sons rock, tons black e regionalismos.




Como os dois marcos iniciais do mangue foram editados em 1994 [os álbuns Samba Esquema Noise, do mundo livre s/a, e Da lama ao Caos, de Chico Science & Nação Zumbi] fala-se que o movimento está completando dez anos. Não é bem assim. Em 1991, Fred 04, vocalista do mundo livre, e o jornalista Renato Lins, escreveram o manifesto Caranguejos com Cérebro, que apresentava algumas bandas da época [Loustal, Lamento Negro e os próprios mundo livre e Nação Zumbi] e discorria sobre as idéias do pessoal. Na verdade, o texto era para ser apenas um release, mas ao chegar a imprensa, tomou dimensões bem maiores. Em março de 1993, a extinta revista Bizz já publicara uma matéria, escrita pelo jornalista José Teles, que falava do novo som produzido em Pernambuco.



O mundo livre s/a, por sua vez, hoje conta vinte anos de existência, tendo chegado ao disco apenas dez anos depois de sua primeira formação – que já juntava guitarras e instrumentos de samba, ainda que Fred 04 fosse um dos raros punks recifenses [“se tivéssemos chegado ao disco naquela época, seríamos apenas mais uma das bandas esquisitas do rock nacional”, afirmou Fred certa vez].



A comemoração dos dez anos do mangue beat [ou “manguebit”, confusão que surgiu quando a nomenclatura começava a aparecer na mídia] não passou em branco. A DeckDisc acaba de lançar em uma box set intitulada Bit os quatro primeiros CDs do mundo livre, todos até então fora de catálogo. Chico foi lembrado em várias matérias de jornal. Recife continua a ser um grande celeiro de bandas. E tanto a Nação Zumbi como o mundo livre vão muito bem, obrigado. Com Jorge Du Peixe nos vocais, a Nação voltou ao prestígio de antes com o CD Nação Zumbi, o DVD Propagando [ambos pela lançados pela Trama] e o hit “Meu Maracatu Pesa uma Tonelada”. O mlsa segue em sua trajetória político-musical com o disco O Outro Mundo de Manoela Rosário [editado pelo selo Candeeiro].



O começo

Em 1998, a citada Bizz já se chamava Showbizz e publicou uma detalhada entrevista com Fred 04, na qual alguns detalhes do começo de tudo eram revelados. “O mangue nunca foi um movimento”, revelou o líder do mundo livre, apesar de lembrar que houve uma cena, já que os artífices do mangue sofreram influência de termos como “a cena punk” ou coisas do tipo.



”A ‘cena’ apareceu há uns doze anos, quando os festivais começaram a acontecer em Recife. Tinha o Abril Pro Rock, que revelou Chico Science e o resto da turma, além de outros menores”, observa a jornalista recifense Ana Lira. “O movimento mangue no sentido ideológico – dos Caranguejos com Cérebro, de Recife como cidade cosmopolita que recebe as influências de todo o mundo sem perder a identidade – creio que ficou restrito à mundo livre s/a e Chico Science e Nação Zumbi”.



Nadilson Silva, sociólogo e pesquisador do mangue, afirma que “houve, sim, um movimento e ele continua muito forte. Mas não foi nada planejado. Surgiu espontaneamente como qualquer movimento cultural de raiz”. Já Luiz Pattoli, pesquisador de música pernambucana e colaborador do site Rabisco, não concorda. “Os próprios idealizadores usam hoje a palavra ‘cena’ ao invés de movimento. Não há um denominador comum musical entre as bandas. Há sim, uma grande vontade de sacudir a cena cultural de Recife e Pernambuco”.



Antes da Nação Zumbi surgir, Chico era mais conhecido como o funcionário público olindense Francisco de Assis França. O apelido, surgido de sua habilidade em misturar sons, teria sido herdado de Carlos Antonio Ramos Braga [tio do jornalista Renato Lins] – o termo “Science” viera graças a seu fanatismo por ficção científica. Francisco foi se transformando em “Chico Science” conforme aumentava seu envolvimento com a música, ainda nos anos 80. Nessa época, Chico e seus vários amigos – entre eles Jorge Du Peixe, futuro percussionista da Nação Zumbi, Fred 04 e o artista plástico h.d. mabuse – começaram a trocar livros didáticos por discos, que se tornavam de propriedade “coletiva”. Chico, em especial, tornara-se fanático por funk e rap, além da banda independente paulista Fellini. Datam deste período – a segunda metade da década de 80 – grupos como Orla Orbe e Loustal, que tinham Chico como integrante, além do Coletivo Hip Hop, em cujos shows o cantor subia no palco trajado como um rapper de verdade, vestindo uniforme Adidas.



A Nação Zumbi só surgiu no começo dos anos 90, quando Chico tomou contato com o grupo afro Lamento Negro, com quem passa a tocar. O músico instruiu o grupo para que tocasse maracatu e hip hop unidos ao habitual receituário samba-reggae dos blocos afro e às informações que Chico acumulara ao garimpar discos com os amigos – muito funk, rap e regionalismos.



Nadilson Silva fala sobre o caldeirão cultural do movimento: “As influências musicais são todos os ritmos populares locais, como frevo, maracatu, ciranda. Em termos de cultura global, eles escutavam muito o funk americano, hip hop [em especial Beastie Boys] -, Africa Bambaata, dub. Uma pessoa que marcou muito o movimento foi Josué de Castro, um geógrafo que estudou muito a cultura local, os ‘homens caranguejos’”. Geopolítica da fome, livro de Josué, era constantemente citado por Science e 04 e aparece nos versos de uma da sprincipais músicas da Nação Zumbi, "Da Lama Ao Caos".



O mundo livre, por sua vez, já ia para sua segunda década, tendo à frente 04. Jornalista de formação, ele criara o grupo a partir de três bandas punks de Recife [Trapaça, Serviço Sujo e 101] e até os anos 90 seguiria em frente exercitando sua porção de agitador. Criaria programas de rádios [Décadas, na rádio Universitária de Recife, com Renato Lins] e ajudaria a produzir shows. Em 1991, ano do ”Caranguejos com Cérebro”, surgia o festival Viagem ao Centro do Mangue, com as quatro bandas divulgadas no manifesto. “Foi aí que senti pela primeira vez que o público saiu ‘infectado’ “, diria Fred em 1998.



O tal manifesto, publicado posteriormente no encarte do primeiro disco de Science [sem crédito para seus verdadeiros autores] misturava referências geográficas [o rico ecossistema do mangue de Recife, tomado com símbolo] e históricas para contrastar a “fertilidade, diversidade e riqueza” da cena local com o crescimento desordenado da capital pernambucana. O texto explicava que a idéia da cena era “engendrar um círculo energético capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop”. Afirmava também que os mangueboys e manguegirls eram interessados em “quadrinhos, tevê interativa, antipsiquiatria, Bezerra da Silva, hip hop, midiotia, artismo, música de rua, John Coltrane, acaso, sexo não virtual, conflitos étnicos e todos os avanços da química aplicada no terreno da alteração e expansão da consciência”. Um conceito perturbador e diferente em termos de pop nacional – visto que, desde os anos 60, não aparecia uma cena regional que parecesse tão antenada, auto-sustentável e articulada.



“O mangue é o movimento cultural mais importante para a música pop local desde a Tropicália. Quebrou a barreira da hegemonia da música do sudeste e de Brasília em nosso pop. Absorveu a cultura de fora, mas reverteu o processo. Um movimento para pessoas antenadas com o mundo, mas que não desprezam a cultura local”, coloca Nadilson, referindo-se à “parabólica na lama”, da qual os mangueboys sempre falavam.

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