segunda-feira, 25 de abril de 2011

O não lugar é terreno fértil para sonhar com um novo lugar


Tomo emprestado de Boaventura Santos[15] o conceito de “fronteira”, adaptando-o livremente à nossa reflexão, como outro campo de riscos e potencialidades. O excluído é aquele que habita o espaço indefinido da fronteira. O termo “fronteira”, neste caso, é entendido não tanto em termos geográficos, mas em termos simbólicos, culturais e até psíquicos. Uma espécie de não lugar, onde mora um não cidadão, marcado pela carência daquilo que é básico à dignidade humana. Por isso mesmo, vê sua identidade ameaçada, questionada, fragmentada. No extremo, até a esperança e a fé se vêem abaladas. Bastaria ter presente, aqui, os rostos dos sem terra, dos desempregados, dos moradores de rua, dos povos indígenas, dos negros e remanescentes de quilombos, dos jovens aliciados pela tráfico e pelas drogas, das mulheres prostituídas ou vítimas da violência dentro de suas próprias famílias, das crianças abandonadas, dos trabalhadores escravos, das vítimas do tráfico de seres humanos, dos migrantes e imigrantes, entre tantos outros.

A partir desse não lugar, o excluído é levado a interrogar a Deus e a interrogar o próprio destino. Dúvida, medo e insegurança passam a habitar o coração e a alma. O perigo da fome, da solidão e do desespero ronda a porta. De acordo com Boaventura Santos, é aí que o pobre vai lançar mão, simultaneamente, de sua herança cultural e da invenção de novas formas de sociabilidade. Esse espaço ambíguo da fronteira – esse não lugar – é ao mesmo tempo cheio de riscos e de novas potencialidades. Uns e outras se misturam, se confundem e se alternam. Se, por um lado, a fronteira revela o excluído como vítima da ordem mundial vigente, por outro, também o revela como protagonista de um novo tempo. A experiência de passar pela fronteira abre perspectivas para buscar uma nova cidadania. Ou seja, o não lugar torna-se o melhor lugar para refletir sobre um novo lugar.

Potencialmente, o terreno ambíguo da fronteira torna-se o lugar ideal e privilegiado para criar as raízes de uma nova sociedade que, em termos mais amplos, é também uma nova noção de pátria, um terreno fértil para cultivar o conceito de cidadania universal e sem fronteiras. A partir da experiência dolorosa de estar fora dos muros que dão proteção aos “incluídos”, engendra-se o anseio por uma casa aberta a todos e a todas, indistintamente. Numa palavra, a multidão de excluídos hoje habita a fronteira de dois mundos ou duas civilizações: de um lado, uma ordem mundial simultaneamente concentradora e excludente, de outro, o sonho de um outro mundo possível. O próprio fato de ser “excluído” é, ao mesmo tempo, denúncia e anúncio, num tempo marcado por profundas assimetrias sócio-econômicas. Denúncia da falta de condições reais para sobreviver em seu próprio meio e anúncio de que mudanças substanciais se fazem necessárias e urgentes.

Os pobres, ao experimentarem no corpo e na alma profundas carências, são portadores dessa nova utopia mundial. Tornam-se, a um só tempo, sinais das contradições da globalização neoliberal e porta-vozes de uma nova ordem mundial. O solo escorregadio da fronteira gera uma atitude ambígua marcada pela experiência de se encontrar fora de casa e da pátria. Nesse não lugar, o não cidadão se depara frente a uma encruzilhada: o que fazer? Entregar-se ao desespero, apelar para a caridade dos vizinhos ou lutar para abrir novos caminhos?

O não lugar, embora indefinido e cheio de riscos, torna-se então fecundo de potencialidades, com vistas a uma nova reflexão sobre a própria existência, sobre a fé em Deus e sobre a prática solidária para com os irmãos e irmãs. Convém não esquecer, aliás, que o próprio Jesus nasceu e morreu fora dos muros da cidade, respectivamente numa gruta e no calvário das execuções. De um lado, diz o relato evangélico, Maria “deu à luz o seu filho primogênito e o deitou numa manjedoura, pois não havia lugar para eles na pousada” (Lc 2,5-7). De outro, ao ser crucificado, o levam para “fora das portas da cidade (Hbr 13,11-12). A família de Nazaré passou, diversas vezes, pela experiência da migração e da exclusão social. Na trajetória que vai do berço-manjedoura à cruz, e desta à ressurreição, a mensagem da Boa Nova do Evangelho mergulha suas raízes no terreno simultaneamente movediço e fértil do não lugar. Numa palavra, até mesmo do ponto de vista teológico, a fronteira é um lugar fecundo para deitar os alicerces do Reino de Deus.

Conclusão

Utilizamos mais uma vez as palavras de Lefebvre para colocar um ponto final em nossa reflexão: “As questões mistas, os acontecimentos marginais, os fatos em contradição aparente ou real, os conceitos laterais, são os mais reveladores e os mais fecundos. As tensões são fecundas, estéreis são as sujeições”[16]. De fato, uma sociedade fechada, cristalizada, petrificada torna-se impermeável à transformação social. A mudança somente será fértil quando se insinua através das brechas e das fissuras das estruturas de auto-suficiência humana, sejam sócio-econômicas, sejam humanas. A situação e o grito dos excluídos, por si só, expõem as incongruências e as tensões de uma determinada ordem social, ao mesmo tempo que cobra transformações profundas. O terreno da exclusão social constitui um campo minado, em que as correntes subterrâneas pressionam por explodir e vir à superfície. Na encruzilhada entre os riscos e as potencialidades da práxis humana, forjam-se caminhos novos em direção a um outro mundo possível.

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