segunda-feira, 25 de abril de 2011

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA


SEM APRESENTAR DADOS NOVOS, "FALCÃO" LANÇA UM OLHAR TERNO SOBRE OS PEQUENOS TRAFICANTES, MAS SUBMERGE NA CULTURA DO GUETO E IGNORA OS DEMAIS ATORES SOCIAIS, PRESENTES EM "NOTÍCIAS DE UMA GUERRA PARTICULAR"



ALBA ZALUAR

ESPECIAL PARA A FOLHA

Falcão é a ave que enxerga longe e mata sem hesitar qualquer ser que ameace o seu ninho. No imaginário dos apelidos, revela uma ruptura com os apelidos afetivos, em diminutivo, que tanto inspiraram Sérgio Buarque de Holanda a refletir sobre a cordialidade brasileira. Estará o Brasil desmantelando-se enquanto cultura e personalidade nacional?

Essa talvez seja a menor das reações ao impacto que o documentário "Falcão" [exibido pelo "Fantástico", da TV Globo, no domingo passado], do rapper MV Bill e do empresário Celso Athayde, provocou nos que o assistiram. Fica provado mais uma vez o poder de comunicação que o veículo televisão tem sobre os demais, não só pela sua capacidade de penetrar em tantos lares mas pela força das imagens, associadas à voz e à letra do que é dito.

Textos, especialmente se acadêmicos, não poderão jamais competir com tanta veracidade contida na imagem e na voz nem com a velocidade da comunicação televisiva.

De fato, o documentário não traz nenhuma novidade do ponto de vista da pesquisa. O que está dito pelos meninos entrevistados já fazia parte do acervo colecionado pelos pesquisadores que se embrenharam nas favelas do Rio de Janeiro, Recife, São Paulo e Porto Alegre, principalmente na primeira cidade, já na década de 80. Eu estava ouvindo mais uma vez as entrevistas que fiz inicialmente só e, depois, com estudantes universitários que moravam na Cidade de Deus, com os mais importantes personagens dessa tragédia urbana brasileira.

Qual a contribuição do documentário "Falcão"? Sem nenhuma orientação acadêmica, mas provavelmente usufruindo um roteiro já traçado pelos pesquisadores há anos, o rapper e seu empresário se embrenharam por locais pouco ou nunca visitados nas cidades brasileiras, ouvindo os meninos e suas mães, reconhecidos apenas pelo sotaque, colocando-os lado a lado em um painel de sofrimento, tragédia e desalento.

O desalento é evidente: no beco sem saída, na lucidez dolorosa da vida desperdiçada, marcada para morrer, que os meninos e suas mães repetem sem que vejam nenhuma possibilidade de saída. Os falcões e suas mães já têm seu destino traçado numa tragédia que parece não deixar lugar para o sujeito da ação.



Imaginário em contraste

Depois desse documentário, dificilmente vai se manter uma outra marca oscilante do imaginário nacional: a maravilhosa cidade do Rio de Janeiro ou a cidade fonte dos horrores do Brasil. Uma gangorra difícil de entender. Síndrome metropolitana dos perigos e dos horrores, o Rio de Janeiro continua a ser apontado como a cidade mais violenta do Brasil, o centro do tráfico de drogas.

Os sotaques nordestinos, gaúchos, paulistas e as imagens de Brasília desmentem isso e comprovam o que pesquisadores têm apontado: a questão é nacional, que exige o cumprimento de um plano nacional de segurança pública.

Vai além: produz no espectador simpatia pelos meninos do tráfico. Não é pouca coisa. Com sensibilidade e ternura, aberto a ouvir o outro, o documentário rompe com uma das características da violência: a impossibilidade de pensar e sentir desde a perspectiva do outro.

Mesmo aqueles meninos que produzem tanto medo quando se os encontram nas ruas em situações de roubo, são humanos e, além do mais, sofrem, sentem falta de amor, acima de tudo respeitam suas mães, têm medo e sabem que vão morrer.

Agora vai ficar difícil construir um inimigo desvalorizado, desumanizado, estratégia comum para justificar a crueldade com que se os enfrenta na guerra, na medida em que os meninos são apresentados, eles também, como vítimas de algo que lhes escapa.

Mas aqui mesmo começam nossas divergências. Para sair do vitimismo, só os considerando na sua capacidade de agir, para além dos constrangimentos que a estrutura social lhes impõe. Nem todos os meninos de tráfico saíram de famílias chefiadas por mulheres, nem todas essas famílias são produtoras de meninos destinados a se tornarem traficantes. Só muito recentemente ouvi falar de crianças brincando de "boquinha", o que ainda aumenta mais a impressão de que não há mais saída.

Mesmo na Cidade de Deus, no auge da guerra entre Batata e Zé Pequeno, na praça onde morou e morreu Manoel Galinha, vi crianças jogando bola, capoeira, aprendendo a bater nos instrumentos de percussão e tudo isso que pode ser encontrado em qualquer favela do Rio de Janeiro, mesmo as mais abandonadas pelo poder público. A favela é muito, muito mais que o tráfico.

O que importa é saber que muitas dessas crianças, cerca de 80% delas, não são atingidas pela cultura que se desenvolve nas ruas, que as prepara para a crueldade e as anestesia para o sofrimento alheio, para a vida, para a morte. Não fora o trabalho constante e dedicado de muitos voluntários de vários tipos de organização, certamente o exército dos traficantes, matadores e exterminadores seria muito maior.



Unilateral

Nesse sentido, não teria sido mais frutífero fazer com que também os meninos que desejam agora matar e roubar -e se acostumam com a violência no uso das armas da morte, dos pneus do sadismo- desenvolvam a capacidade de olhar o próximo sem ódio e sem visões persecutórias que só podem acabar com a destruição completa do outro?

O documentário é unilateral. Poderia ter sido mais se pusesse vítimas dos assaltos, muitas delas tão destituídas quanto os meninos assaltantes e assassinos, a falar do que sofrem quando perdem seus bens e entes queridos.

Por que não ouvir também os policiais que, apesar da função guerreira que lhes é destinada na estratégia policial de hoje, se negam a assumir as mesmas posturas sádicas e cruéis de outros colegas que perderam o controle sobre a sua capacidade de serem violentos, exatamente como os meninos? Serão todos, policiais e meninos do tráfico, meros fantoches da banalidade do mal que os faz tão obedientes às ordens superiores?

Estudos recentes dizem que não. Até mesmo na Alemanha nazista havia os que se recusavam a cumprir ordens, que adoeciam, que fugiam. O documentário de João Moreira Salles sobre a guerra particular entre policiais e bandidos na favela Santa Marta ["Notícias de uma Guerra Particular"] é, nesse sentido, mais completo. São muitas as vozes, muitos os atores do drama.

Trata-se, então, de dissolver um círculo vicioso que atrela os medos e ódios em cadeias de vingança e desconfiança sem fim. Para isso, é preciso tirar as vendas que cegam sobre tudo o que se passa fora do território mais próximo, das identificações mais restritas. O veículo para isso é a transposição para outros mundos, a abertura para quem, de fora, fala daquele e de outros mundos, seja pelo texto, seja pela imagem.

Tanto no documentário quanto nas falas antes e depois da apresentação, seus diretores constroem o lugar da autenticidade única que só os que vivem nas favelas podem ter para falar do lugar. Nem cineastas nem antropólogos ou sociólogos teriam a legitimidade para pensar e falar sobre esses locais, também considerados territórios fechados, exclusivos de seus moradores, os únicos que poderiam escrever a sua própria história. Uma das armadilhas da pesquisa etnográfica parece ter sido abraçada como missão pelos dois diretores: afundar no próprio universo, com o risco de manter a cegueira.

No fundo, uma continuidade com o movimento que também é próprio das organizações juvenis baseadas no território. No fundo, a cultura do gueto, que também aprisiona pelo lado de dentro, fechando as pontes, os laços, os contatos com o mundo de fora. É justamente isso o que mais alimenta a violência.

E faltou também esse personagem principal da tragédia dos meninos: os traficantes, os chefes de quem são fiéis seguidores. Os meninos ganham pouco, são carentes, têm medo, sofrem. E os traficantes que, com uma lógica instrumental, apenas os usam para acumular lucros extraordinários? Qual a dúvida que têm sobre o seu papel aliciador de menores? Qual a justificativa que oferecem para o seu negócio que destrói mentes, corações e vidas?

Nas entrevistas que fiz, sujeitos com fraturas expostas que sujeitam meninos, conhecidos pelos trabalhadores como teleguiados, não conseguem esconder suas dúvidas e contradições.

Não há razão para crer que nenhum desses personagens está sem saída, que seu destino foi marcado inexoravelmente pela miséria de suas famílias, pela ausência dos pais, pelo desamparo de demais protetores, pelo fracasso dos serviços públicos. Mas não resta a menor dúvida de que é preciso fazer muito mais para ajudar os que ficaram presos nas malhas do crime e da violência pela violência.

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Alba Zaluar é antropóloga e coordenadora do Núcleo de Pesquisa das Violências, ligado ao Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autora de "Integração Perversa - Pobreza e Tráfico de Drogas" (FGV).



FALCÕES OU POMBOS-CORREIO?

PÚBLICO CONSUMIDOR POTENCIAL QUE FAZ GIRAR O MERCADO DAS DROGAS, CLASSE MÉDIA DESAPARECE DA REPRESENTAÇÃO NO DOCUMENTÁRIO DE MV BILL E CELSO ATHAYDE



DENIS LERRER ROSENFIELD

ESPECIAL PARA A FOLHA

Há o grau zero de apresentação da realidade? Seria possível dizer que uma realidade pode ser considerada, em si, como nua e crua, como se uma sucessão de imagens pudesse esgotar algo que consideramos, definitivamente, como verdadeiro? Tal é, no entanto, a pretensão do filme "Falcão", feito por MV Bill e Celso Athayde. Os comentários e as reações posteriores tenderiam a confirmar essa aparente intenção.

Evidentemente, as imagens são impactantes e comoventes, e a tragédia daqueles meninos banidos de uma sociedade civilizada clama por uma solução. Não se pode, contudo, desconhecer outros autores ausentes nem cair na hipocrisia.

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O próprio ministro da Justiça se declarou impactado com o que tinha visto; será que ele desconhecia essa realidade?

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A câmera, ao selecionar imagens, ao recortar a realidade sob um determinado prisma, não deixa de julgar em sua pretensão mesma de apresentar aquele caso como sendo exemplar e neutro. Em um primeiro momento, podemos ter a sensação de que aquilo que é apresentado consiste numa mera descrição, à maneira de um botânico fazendo a descrição de uma planta.

No caso de uma câmera apresentando um grau extremo de miséria humana, sob uma ótica, digamos, naturalista, o impacto da cena -o seu mexer com nossas emoções, o seu despertar mais fortemente valores morais- vela, por assim dizer, o ângulo de recorte da realidade.

Ora, esse ângulo é valorativo ao escolher um enfoque, ao querer dizer que essa é a verdadeira realidade, ao colocar aqueles meninos como presas do destino. O presente esconde o ausente. Bandidos se tornam "bandidos sociais" no interior de uma engrenagem apresentada como se fosse inexorável.

Os "falcões" são, na verdade, pobres pombinhos, vítimas de uma realidade que os ultrapassa. A posse de armas e o portar fuzis e pistolas produz um forte sentimento de auto-estima, que é reconhecido, inclusive, pelas meninas que gostam de meninos assim "armados". Eles são, porém, meros "operários", "abelhas" de uma fábrica que os emprega, pagando-lhes salários maiores que os que teriam num emprego da sociedade normal, a que se situa fora das favelas.

Essa "normalidade", eles chegam mesmo a ironizar pelos pequenos valores pagos e pelo seu descuido para com eles, enquanto a "firma" lhes dá sustento e reconhecimento, mesmo que por um curto período de vida. As imagens daquela "firma", funcionando no corte da maconha, no seu esfarelamento e no seu empacotamento, mostram uma divisão do trabalho em estado embrionário, mas altamente produtivo, dado o retorno que os "investidores" têm.



Outro lado

Mas aí surgem perguntas. Onde estão os "investidores"? Onde estão os "donos da firma"? Onde estão os grandes beneficiários desse negócio? A câmera não os encontrou? A câmera não os selecionou? Não têm eles responsabilidade naquilo que é apresentado como um destino desses meninos, como se não tivessem outra alternativa na vida?

Drogas são vendidas e consumidas. A "firma" produz para um mercado, que deve ser altamente lucrativo, considerando a expansão de sua produção e a sofisticação de sua rede de distribuição, o seu "comércio" propriamente dito.

O narcotráfico só tem crescido, o que mostra a pujança de sua atividade e a ampliação do seu mercado consumidor. Apresentar a realidade como se o "crack" e a "maconha" fossem principalmente consumidos pelos "falcões" é uma evidente falsificação da realidade, pois os verdadeiros consumidores são constituídos por pessoas abastadas, que podem pagar o alto preço da cocaína e de outras drogas.

Ou seja, o mercado consumidor é formado por uma alta classe média que não "aparece" naquelas dramáticas cenas. Onde estava a câmera naqueles instantes? Não haveria nada aqui a ser visto ou ao menos descrito por meio de palavras se a câmera não os pôde alcançar?

O Estado aparece sob a forma de policiais corruptos, cuja única preocupação seria uma espécie de luta de vida e de morte com aqueles "meninos". Trata-se de um combate entre o animal e a sua presa, em que os papéis freqüentemente se invertem nos lutos que levam ao cemitério.

Grassa a impunidade, embora os meninos sejam "punidos" por essa realidade, porque raramente atingem aquilo que consideramos a vida adulta propriamente dita, pois antes disso são mortos. Eles são "punidos", sem que haja estabelecimento de culpa, instrução de processo ou julgamento.

Num certo sentido, não haveria impunidade, pois eles seriam, de qualquer maneira, "criminosos".

No entanto uma punição sem Estado é nada mais do que a vigência de um estado de natureza em que tudo vale: a generalização da violência. Há, porém, um outro tipo de impunidade que tampouco aparece no filme, a impunidade dos responsáveis do narcotráfico e dos que compactuam ou colaboram com essa situação. E dessa impunidade, o Estado é profundamente responsável, e essa não se faz com medidas sociais, mas propriamente institucionais, isto é, jurídicas e policiais.



Menos hipocrisia

Antes do filme de MV Bill e Celso Athayde, um outro filme, igualmente forte, "Notícias de uma Guerra Particular", de João Moreira Salles e Kátia Lund, mostrou a mesma realidade sob uma outra ótica, dando a voz a outros atores, como os policiais envolvidos na repressão desses agentes e olheiros do narcotráfico ou referindo-se aos consumidores.

Naquele, então, as reações foram igualmente vigorosas, com autoridades lamentando uma tal situação e a sociedade exigindo soluções. Nada, entretanto, verdadeiramente mudou. Passado o impacto, tudo voltou a ser como antes, talvez no aguardo de um outro filme que despertasse transitoriamente as mesmas emoções.

O próprio ministro da Justiça [Márcio Thomaz Bastos] chegou a se declarar impactado com o que tinha visto. Será, porém, que o ministro e as outras autoridades desconheciam essa realidade? Não a conheciam de suas próprias fontes policiais? Não tinham visto o filme anterior de Moreira Salles, os clipes do próprio MV Bill ou não tinham, ainda, escutado as suas músicas? E os comentários televisivos de pessoas chocadas que também compactuam com o silêncio reinante?

Contornos de compaixão não são necessariamente morais. Talvez um pouco menos de hipocrisia faça bem à sociedade brasileira.

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Denis Lerrer Rosenfield é doutor pela Universidade de Paris 1 e professor titular de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É autor de "Política e Liberdade em Hegel" (Ática), entre outros.



AS ASAS QUEBRADAS

SEM PERSPECTIVAS OU REFERENCIAIS, CRIANÇAS SE ENVOLVEM NO NARCOTRÁFICO PARA EXORCIZAR O MEDO E FANTASIAR A ONIPOTÊNCIA DA VIDA ADULTA



MARIA RITA KEHL

ESPECIAL PARA A FOLHA

Falcão - Meninos do Tráfico" mostrou a milhões de telespectadores da TV Globo, no domingo passado, a vida de algumas crianças incapazes de alçar vôo; aos três anos, a força arrasadora do real já lhes cortou as asas da imaginação. Aos seis, brincam de vender maconha e cocaína, de torturar e executar os alcagüetes queimados dentro de um pneu ou executados a bala na sarjeta. De mentirinha? Brincam para tentar exorcizar o medo: treino de sobrevivência na barbárie. O que você quer ser quando crescer? "Bandido."

O que lhes sobra para fantasiar se a onipotência, motor da fantasia infantil, se realiza todos os dias na forma da tirania praticada por seus irmãos mais velhos, por tios e pais adolescentes destinados a morrer antes dos 20 anos? Do ponto de vista da constituição psíquica, a fantasia é o suporte do desejo. Fundamenta a experiência da interioridade, de um "si mesmo" que mede sua diferença em relação ao mundo real. Uma subjetividade sem fantasia é uma terra devastada, sujeita a servir ao gozo do outro.

Assim, de pequenino, se torce o pepino. O discurso único do tráfico se instala, totalitário, impedindo a imaginação das crianças das favelas cariocas. Na falta de espaço para outras fantasias, não há um ponto de fuga onde ancorar outro desejo senão o desejo de morte projetado na droga, na licença para matar, no poder irresistível do terror sem lei. Um tal desejo está fadado a se realizar, sem demora.

Desde os primeiros minutos do documentário, esse terror produziu seus efeitos sobre mim. Flagrei-me acalentando idéias de extermínio. Quantos espectadores do "Fantástico" não terão se envergonhado ao pensar que a morte desses garotos até que poderia ser bem-vinda?

Depois, compreendi que estava contaminada pela única fantasia (ou profecia?) deles. Destes que se pensam sem futuro e se engajam no tráfico por um salário mínimo (!) e dois ou três anos de "fama" antes da morte certa.

Na voz chapada do menino de dez anos, o jargão da crítica social se transforma em ideologia conformista: "Faço isto porque ninguém me deu nada".

No lugar desse nada, a droga instala um vazio mais suportável: "Não fico triste, tô sempre se drogando", diz a criança que já sabe que sua existência não conta: "Se eu morrer, vem outro como eu". Mas não deixa de lamentar sua desesperança: "É muito esculacho nessa vida...".



Selvageria de mercado

O tráfico de drogas não é antagônico às economias de mercado: é sua extensão selvagem. As sociedades ditas liberais convivem com ele por uma afinidade lógica: os lucros astronômicos formados com base em trabalho escravo (voluntário) falam a mesma língua de outras formas de acumulação acelerada de capital.

O capital financeiro, por exemplo, cuja lógica dispensa a negociação política, também nos esteriliza para sonhar com um mundo mais justo.

O tráfico, como o capitalismo, produz os sujeitos dos quais se alimenta. De um lado, no asfalto, estão os consumidores do único meio de gozo tão potente que dispensa a publicidade. Do outro lado, da linha de montagem e da distribuição, está um exército de servidores voluntários. São escravos: quem entrou, só sai morto. As crianças sabem disso, mas entram. Não há poder mais eficiente do que aquele que se sustenta sobre o desejo dos dominados.

Entre os consumidores que vivem no asfalto, há quem se sirva da droga para sonhar. Mas na ponta de cá, quem se droga não sonha. A droga é a hiper-realidade cotidiana, aliada ao medo e ao poder dos fuzis: quem vacilar sabe que vai morrer. O que equivale a uma condenação sumária: impossível viver sem, vez ou outra, vacilar. Por isso, para as crianças aliciadas desde que deixam a barra das saias das mães, nenhum sonho é possível. Quem sonha, mais cedo ou mais tarde, vacila. Assim se fecha o circuito do gozo mortífero contra o qual as crianças são indefesas.

Indefesas porque lhes falta pai, dizem os pequenos entrevistados por MV Bill. Mas sobretudo lhes falta, na favela excluída do poder público, qualquer outra referência que sustente a lei simbólica -a que interdita o gozo e possibilita o investimento das pulsões de vida em objetos possíveis, não absolutos. A lei da droga é absoluta. Não há nada que interdite o discurso do gozo que gira em torno dela.

Nada além do desejo quase impotente de algumas jovens mães. Os psicanalistas costumam desconfiar do poder das mães; é um mal-entendido a respeito da função paterna. A falta do pai, por morte ou abandono, fere e desampara o filho. Mas, se a mãe está "na lei", a função paterna opera por meio de seu discurso. Uma delas, aparentemente muito jovem, diz que seu filho de dois anos "sabe tudo" sobre o tráfico. Mas acrescenta: "Eu quero que ele saiba o que não é o tráfico. Que ele saiba que existem outras coisas no mundo".

É claro que para isso é preciso que o mundo, o "nosso" mundo, inclua a favela e introduza, na vida dos candidatos a falcão, outras perspectivas.

Outra mãe conseguiu legar ao filho um fragmento de sonho: prometeu levá-lo ao circo. Morreu, deixando o menino marcado por um desejo -e uma falta- que a droga não podia satisfazer. Desejo de infância e de magia, riso, brincadeira.

Levado pela equipe de filmagem ao circo, o jovem operário da indústria da droga ainda teve tempo de desejar outra vida. Pensou ser palhaço: a face benigna do "nonsense". Quem sabe, esculachar o esculacho.

Mas não conseguiu deixar o tráfico e morreu (como outros 15 entre os 16 entrevistados) antes de o documentário de seu mano Bill ter ficado pronto.

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Nota

Colaborou Maria Marta Assolini.

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Maria Rita Kehl é psicanalista, autora de "Ressentimento" (Casa do Psicólogo).















LADAINHAS DAS SEIS DA TARDE

JOÃO MOREIRA SALLES DIZ QUE EXÉRCITO PODE SE CORROMPER E QUE DISCURSO DA VIOLÊNCIA É DE UMA "MONOTONIA ACACHAPANTE"



SYLVIA COLOMBO

EDITORA DO FOLHATEEN

Nem "zelo missionário" nem "bons sentimentos". Não é com esse tipo de arsenal que o cinema pode colaborar na discussão sobre o tráfico de drogas e a violência nos morros do Rio. Para o cineasta João Moreira Salles, diretor do documentário "Notícias de uma Guerra Particular" (que está sendo lançado em DVD), agora é hora de contar histórias diferentes sobre as favelas.

Ele mesmo, entretanto, diz que não quer mais voltar lá ("o discurso da violência é de uma monotonia acachapante") e fala de "Falcão", que faz "perguntas duras", sem fazer "qualquer elogio ao bandido social".

Leia a entrevista que o cineasta concedeu à Folha, por e-mail.



Folha - Na entrevista que está no DVD de "Notícias de uma Guerra Particular" (Videofilmes), você diz que a idéia era fazer um filme sem sociólogo, sem cientista político. Fernando Meirelles, quando lançou "Cidade de Deus" (2002), respondeu aos que diziam que o filme não tratava o tema com profundidade que não queria fazer sociologia, e sim cinema. MV Bill também disse querer que "Falcão" não tivesse esse tipo de explicação. Por que essa idéia, que parece generalizada, de que uma reflexão acadêmica sobre o tema é um problema?

João Moreira Salles - Não é problema nenhum, pelo menos para mim. Certamente a melhor reflexão sobre a violência não está sendo feita pelos escritores, cineastas, dramaturgos ou cantores de hip hop, mas pela academia. Houve um momento em que os escritores -penso especialmente em Rubem Fonseca- chegaram antes ao assunto e nos avisaram com anos de antecedência o que iria acontecer.

Hoje são cientistas sociais como Claudio Beato, Alba Zaluar, Julita Lemgruber, Luiz Eduardo Soares, Inácio Cano, Michel Missi, entre tantos outros, que estão na fronteira.

A relutância que você aponta nada tem a ver com a academia. Diz respeito apenas ao documentário. Insisto em dizer que a única questão relevante para o documentário é o próprio documentário, é o modo de fazer e de narrar.

Nenhum filme será importante se, antes de tudo, não pensar em si mesmo. A maldição do documentário é acreditar que ele se esgota no tema. No limite, o tema é quase irrelevante. Há grandes filmes sobre praticamente nada, e filmes péssimos sobre grandes temas.

A estrutura clássica, velha de mais de 60 anos, na qual especialistas sentados em seus gabinetes oferecem opiniões sobre um determinado tema, está esgotada. É impossível fazer um filme vigoroso empregando essa maneira de narrar. Evitei os especialistas não por descaso com eles, mas por apego ao documentário.

É só isso. Não é pouco.

Folha - Como você vê a ação recente do Exército nos morros do Rio? É contra ou a favor? Por quê?

Moreira Salles - Até onde sei, o Exército não tomou a decisão de se tornar um aparelho de combate à violência urbana. Por enquanto, o incidente dessas últimas semanas é apenas isto: um incidente, motivado por orgulho ferido.

Sem dúvida nenhuma, o Exército assumiu um risco quase irresponsável, porque, se as armas não fossem encontradas, ele estaria desmoralizado. Por isso ele as encontrou. Como o fez, ninguém sabe direito. Existem várias dúvidas. Talvez tenha negociado com bandidos, talvez não.

Vê-se desde já que uma ação dessas abre a possibilidade de vasos comunicantes entre quem reprime e quem é reprimido. Em pouco tempo, o Exército poderia ficar parecido com a polícia.

O que menos precisamos neste momento é de um Exército infiltrado pelo narcotráfico. A ação repressora é eminentemente técnica, o Exército não foi preparado para empreendê-la. A população, que com razão se vê apavorada, aplaude, sem pensar que, com o tempo, podemos estar corrompendo mais um aparelho do Estado -e, dessa vez, aquele que mais tem armas.

Folha - Por que "Notícias" não tratou do "outro lado do balcão"? Ou seja, por que não houve uma preocupação de ouvir a classe média, que consome a droga traficada na favela?

Moreira Salles - Porque meu tema não eram as drogas, era a violência. O consumidor é importante, mas ele se mantém longe dos tiros e das mortes. Dito isso, não seria incorreto afirmar que o consumidor é o grande sujeito oculto de "Notícias".

Folha - É possível comparar "Notícias" com filmes como "Os Donos da Rua" (EUA, 1991) e "O Ódio" (França, 1995), no sentido de que reforçam uma demanda do público, predominantemente de classe média, por temas relativos à bandidagem? Tem havido mais glamourização do tema?

Moreira Salles - "O Ódio" eu assisti recentemente, mas "Os Donos da Rua" eu vi há muito tempo e não me lembro dele. Mas entendo a pergunta. Não acho que ela seja específica. O desvio sempre exerceu fascínio. Dizem que, no "Paraíso Perdido", de John Milton [1608-1674], o grande personagem é Lúcifer.

É evidente que um filme sobre uma guerra sangrenta de gangues terá sempre mais apelo comercial do que um documentário sobre carmelitas enclausuradas. Mas isso não significa que todos os filmes que abordam a violência sejam cínicos. Alguns são, a maioria dos americanos é; os nossos, nem tanto.

Pegue "Falcão": MV Bill faz perguntas duras, fala em "vocês que espalham a desgraça", mostra que bandidos executam tanto quanto a polícia. Seria má-fé ver ali qualquer elogio ao bandido social.

É da tradição do cinema refletir as questões do seu tempo. A violência é uma destas questões.

Folha - Você disse que "Notícias" é um "filme de urgência". Hoje, quase sete anos depois, esse "estado de urgência" segue existindo no morro. O quão urgente é debater um tema que já se tornou de uma urgência crônica?

Moreira Salles - Do ponto de vista do cinema, urgente mesmo é ir à favela -se houver mesmo essa insistência de voltar à favela- para tratar de qualquer assunto que não seja o da violência. Por que essa obrigação? Por que imaginar que lá não existem outras histórias? Por que não contar uma história de amor? É preciso tomar cuidado com isso.

A tirania do tema único é sobretudo a tirania do personagem sem movimento, paralisado num enredo único e pobre. Nasce, vive um pouco, mata um pouco, morre. O mundo fica achando que é só isso.

De um modo geral, nosso cinema deveria olhar menos para baixo e erguer os olhos, se não para cima, onde estão os poderosos, ao menos para os lados: cineastas falando do seu mundo.

Do contrário, passaremos a vida repetindo a mesma fórmula de 90% dos filmes não-ficcionais brasileiros: os que têm, repletos de piedade e de indignação, filmam os que têm menos ou nada têm. Chega de tanto zelo missionário, de tão bons sentimentos. Por que não enfrentar o que é realmente difícil? A vida da gente, os nossos afetos, a nossa eventual mediocridade, a nossa eventual impotência?

Basta olhar a Argentina e aprender um pouco com eles. A respeito do debate do tráfico, acho que já estamos fazendo isso há muito tempo. Certamente não é o cinema que dará uma contribuição importante para a discussão. Não é o nosso papel. O papel do cinema é refletir sobre si mesmo. É avançar a gramática.

Folha - Se você fosse subir ao morro hoje, que pergunta acrescentaria a seus entrevistados?

Moreira Salles - Eu não subiria o morro novamente. Uma coisa que aprendi é que o discurso da violência é de uma monotonia acachapante. Lembra as ladainhas das seis da tarde. As mesmas palavras, de novo, de novo.

O CINEMA DE PALAVRA

PIONEIRO, EDUARDO COUTINHO DIZ QUE A REPRESENTAÇÃO DO TRÁFICO SUBSTITUIU A DO MORRO, NA TV E NO CINEMA



MARCOS STRECKER

DA REPORTAGEM LOCAL

Encontrar o limite entre ficção e realidade é uma discussão que está na origem do cinema. De Robert Flaherty a Joris Ivens, passando por movimentos como o neo-realismo, a "nouvelle vague" e os seus descendentes, o tema da diferença entre o autêntico e a sua representação -ou melhor, se de fato existe essa distinção- está mesmo na origem da discussão sobre o documentário como gênero.

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Prefiro tratar de coisas em lugares onde nada acontece

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Periferia dos centros produtores e de crítica, o Brasil sofreu com a forte ideologização que marcou a discussão sobre o cinema documental das décadas de 60 até 80. A política estava na ordem do dia. Mostrar a verdade era mostrar os "oprimidos", numa forma estética que derivou ela mesma para o ideológico e autoritário. Não é surpresa que tenha sido da "periferia", à margem dessa discussão, que se firmou no final dos anos 80 o principal documentarista brasileiro, pai da atual geração.

Bem antes de vários cineastas subirem o morro para registrar a "realidade" das favelas, Eduardo Coutinho já conversava com seus moradores. "Santa Marta - Duas Semanas no Morro" (1987), "Santo Forte" (1999) e "Babilônia 2000" (2000) exploram diferentes temas sobre as comunidades. Seu cinema se aproxima dos pioneiros do documentário, procurando compor um retrato antropológico dos seus personagens.

Ironicamente, agora que o recrudescimento da violência provocou um excesso de imagens e a banalização da violência, é o próprio Coutinho que não vê mais razão em filmar os morros. Foi o que o autor de "Edifício Master" e "Cabra Marcado para Morrer" disse em entrevista à Folha.



Folha - Como o cinema e a TV representam o morro hoje?

Eduardo Coutinho - Eu não falo de filmes dos outros, que não os meus... Mas posso dizer o seguinte: o que tem aparecido não é nem a questão do morro, mas do tráfico. A emergência das drogas e o crime mais (ou menos) organizado. Os filmes são sobre isso, que é o que está na mídia.

Nos meus filmes -fiz três sobre favelas- simplesmente ignorei a presença do tráfico. Ou melhor, ele entrou porque acabou entrando na voz dos outros. Mas nunca foi meu interesse fazer filme sobre o tráfico.

Em "Santa Marta", fiz um filme sobre a violência na favela, a violência simbólica, a violência inclusive "terna" do morro, entende? E nele apareceu mais o tema do tráfico. Mas nos outros dois -um sobre religião e "Babilônia"- eu não queria incluir nenhuma questão sobre o tráfico. Agora, apareceu nos depoimentos, eventualmente. "Meu irmão morreu", por exemplo. Então entra como um elemento acessório, embora seja essencial para as pessoas.

Folha - Sua forma de filmar quase criou um estilo, um gênero de filme do morro, um novo realismo. Você acha que criou seguidores?

Coutinho - Na verdade, vários desses filmes [feitos atualmente] são de observação, não são filmes de entrevista. Eu só posso te responder o seguinte: eu tento não usar a palavra entrevista nem depoimento. Tento conversar com as pessoas. Quando realizei "Santo Forte", era um filme que ninguém queria fazer, e eu fiz. Chamo isso de cinema da palavra.

Folha - Você parece se preocupar muito com a intimidade e a individualidade dos moradores. Até onde o cineasta pode ou deve mostrar?

Coutinho - Cada filme é um filme. No meu caso, eu não trabalhei com máscara. Toda referência que houve ao tráfico era o de um tráfico antigo, porque do novo ninguém vai falar. É evidente que referências [sobre tráfico ou violência] jamais entrariam na medida em que envolvesse o bem-estar da pessoa e de mim mesmo. Isso até é um detalhe.

Mais complicado, na verdade, é tratar de coisas pessoais. Nem é uma questão da favela. Aconteceu quando entrevistei uma garota de programa. Faço questão de dizer que ela não está falando para mim, mas para a câmera. Cada vez que entrevisto uma pessoa, me pergunto: por que ela está dizendo isso? No caso da garota de programa, ela sabia que ia aparecer e não via problema nisso, porque a família sabia. As questões éticas aparecem caso a caso.

Folha - Você fala da diferença entre o tráfico antigo e o novo...

Coutinho - Nos meus filmes em que aparece o morro, quando aparecia o tráfico, foi no começo da guerra civil, em 86, 87. Essa guerra civil séria que tem já 20 anos e que vai continuar. Bem, isso aparecia mais. Agora, mesmo sem eu perguntar sobre isso, algumas pessoas se referiam ao grupo antigo que dominava o morro, era um grupo considerado odioso por eles. Eu deixei no filme porque era um grupo que não voltaria mais, é um outro cuidado.

Folha - Seu segredo é filmar sem um objetivo definido, procurando uma realidade que deve ser apreendida?

Coutinho - Enquanto puder fazer filmes em que não tenha nada a dizer, continuarei a fazer filmes... Se tiver que fazer algo para denunciar, a guerra de sei lá o que, a luta de classes, o lixão... Isso não faço. Faço filmes para saber como vivem as pessoas. No caso, pessoas que vivem em condições que não são as minhas. O que penso delas é secundário.

Folha - Você acha que seus filmes acabam mostrando uma certa realidade brasileira, o conflito entre o arcaico e o moderno, por exemplo?

Coutinho - Todos os tipos de conflito aparecem. Eu não filmo o Brasil, filmo um lugar. Isso em todos os filmes que tenho feito, praticamente. O que não significa que eu não esteja interessado no geral. No caso de "Edifício Master", por exemplo, não estou procurando o morador típico, que vai dizer aquilo que para mim é típico da classe média.

Quando estou falando com uma pessoa da comunidade rural, falo dela. E acho que dela se alude ao tipo de cultura, de conflitos, de coisas que permeiam o Brasil, entende? Cabe aos que ouvirem essas pessoas fazerem as leituras mais diversas.

Folha - Voltando ao caso específico do Rio, com o recrudescimento do conflito, agora até com o Exército, isso inspiraria você de alguma forma? Se você fosse filmar hoje o morro, isso te influenciaria como?

Coutinho - Dada essa conjuntura explosiva, que ainda vai durar muito, eu simplesmente não vou mais filmar os morros. Enquanto tiver essa situação, não me interessa, entende? Eu não estou interessado em filmar conflitos. A guerra de Israel com os palestinos não me interessa, por exemplo. Acho que cada vez mais vai haver filmes e programas de televisão que podem, sem dúvida, ser necessários. Mas não estou nessa, não. Prefiro tratar de coisas em lugares onde nada acontece. Onde a única coisa que acontece é o seguinte: você coloca uma câmera e algo acontece dentro da câmera. Nada aconteceu antes nem depois.

080406

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